terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Por causa de uma famosa marca de sapatos

Biblioteca Joanina (http://static.publico.pt/coleccoes/edicoes_facsimiladas/#inicio)
O jornal Público tem vindo a pôr à venda a interessante «colecção de 1.ªs edições Fac-similadas que reúne 16 obras emblemáticas da cultura portugusesa», associando-se deste modo às comemorações do quinto centenário da Biblioteca Joanina da Universidade de Coimbra. A série iniciou-se no passado dia 8 de Outubro com Os Lusíadas e encerrará na próxima semana com Coração, Cabeça e Estômago de Camilo Castelo Branco. Hoje, o volume publicado é Mensagem, como se sabe o único livro editado em vida de Fernando Pessoa. Dois dias antes do aparecimento às terças-feiras de cada um dos dezasseis volumes, o Público apresenta um texto de um especialista que, de forma breve e rigorosa, apresenta o livro em causa. Na edição do passado domingo, António Apolinário Lourenço encarrega-se dessa tarefa e narra o delicioso episódio que justifica o título do texto de hoje deste blog. «O título inicialmente previsto para o livro, Portugal, foi alterado já na tipografia, para não coincidir com o de uma famosa marca de sapatos» (Público, 12/I/2014, p. 55).


Poder-se-á discutir a relevância que Mensagem tem no universo literário pessoano e até no peculiar modo como Eduardo Lourenço interpreta ontologicamente a poesia do autor de Tabacaria. De qualquer modo, não podem restar dúvidas que, sem Mensagem, o luminoso Fernando Rei da Nossa Baviera não teria um dos começos mais fascinantes do ensaísmo português do nosso tempo. Ler Eduardo Lourenço recupera esses parágrafos inesquecíveis e lembra os seus visitantes que ainda estão a tempo de encontrar Mensagem num quiosque perto de si.


«Custa-me imaginar que alguém possa um dia falar melhor de Fernando Pessoa que ele mesmo. Pela simples razão de que foi Pessoa quem descobriu o modo de falar de si tomando-se sempre por um outro. E como os deuses lhe concederam um olhar imparcial como a neve, o retrato que nos devolve do fundo do seu próprio espelho brilha no escuro como uma lâmina. Quando encarnada em figuras que parecem vivas – e ele supunha mais vivas do que ele – essa descoberta de si como outro, convertida em jogo da sua verdade, chamou-se Heteronímia. Talvez nada melhor que esta palavra abstrusa de sua invenção, tornada hoje quase popular, indique a que ponto um dos mais estranhos espíritos do século XX se converteu num mito. Não me vou prestar ao ridículo de esclarecer o que é um mito depois de o mesmo Pessoa ter configurado da sua essência a versão exacta:



O mito é o nada que é tudo.
………………………………
Em baixo, a vida, metade
De nada, morre.

Mito, vida que não passa na vida que passa – e toda passa –, lenda a escorrer da realidade. Foi para Ulisses, encarnação da primeira viagem iniciática da nossa alma futuramente grega, como ele a sonhava, que o autor de Mensagem compôs os versos famosos. Não menos mágica é, para nós, a aventura daquele que era, por fora e para os outros, Fernando Pessoa e que por dentro não tinha nome próprio, como todos nós. Só que ele o sabia e nós menos do que ele. Como Ulisses, sem para si existir nos bastou. Por não ter sido foi vindo e nos criou, tais que já não podemos contemplar o céu da nossa cultura sem o ver a ele no centro, convertido em «mito brilhante e mudo», irradiando a sua luz enigmática». 

Fernando Pessoa por Mário Botas (1982)