terça-feira, 6 de maio de 2014

Não por acaso Sena e Casais são poetas

Fernando Pessoa (imagem recolhida em http://revistanaipe.com)



Se o tempo de hoje cultivasse a memória, seria escandalosamente inútil recordar a importância decisiva que Fernando Pessoa teve na configuração do percurso intelectual de Eduardo Lourenço. Por outro lado, talvez não seja menos verdade que as interpretações do autor de Fernando, Rei da nossa Baviera desempenharam igualmente um papel relevante na recepção crítica – mas esta expressão é tudo menos exacta neste contexto… – do autor de Ode Marítima. Mas, até para combater uma espécie de amnésia mais ou menos eufórica destes dias, convém, por vezes, recordar que, muitas décadas antes de Alain Badiou falar na urgência filosófica de se ser contemporâneo de Pessoa, outros leitores do poeta dos heterónimos sublinharam a novidade radical desta espécie de aventura nos confins de uma ontologia negativa. Em Pessoa Revisitado, Eduardo Lourenço reconhece que, ainda antes dele, outros intérpretes deram conta dessa essencial ruptura que o poeta de Orpheu significava. Nesse livro, começado a escrever durante a década de Sessenta e publicado já depois do 25 de Abril, podemos ler o seguinte: «Não temos nem queremos outro guia que o próprio Pessoa. Recentemente, um dos seus clássicos exegetas admitiu a hipótese de ser ele o seu mais lúcido comentador. É o que alguns sempre pensaram, em particular Casais Monteiro e Jorge de Sena, que não por acaso são poetas e posteridade autêntica de Pessoa».  
Pessoa Revisitado é um confronto, duro mas leal, com a exegese clássica de Pessoa, designadamente a de João Gaspar Simões, Jacinto do Prado Coelho e Mário Sacramento. Para melhor compreender o diálogo com este último, que, de certa maneira, representa a leitura neo-realista de Pessoa, dever-se-á também tomar em consideração um artigo que Eduardo Lourenço publicou em 1952 no “Suplemento Das Artes, Das Letras” de O Primeiro de Janeiro com o título “Explicação pelo inferior ou a crítica sem classe contra Fernando Pessoa”. Décadas mais tarde, saber-se-á que “Explicação pelo inferior” é, antes de mais, uma resposta a Mário Dionísio. Desse debate, retomado não sem equívocos na década de Oitenta do século passado, poderá o leitor do II Volume das Obras Completas, com o título Sentido e a Forma da Poesia Neo-Realista e Outros Ensaios, neste momento em fase de revisão de provas tipográficas, ficar em breve com um retrato bastante pormenorizado. 

Jorge de Sena


Por agora, Ler Eduardo Lourenço centra a sua atenção naqueles que, por assim dizer, anteciparam alguns traços da interpretação que o ensaísta fez de Pessoa: Casais Monteiro e Jorge de Sena. E que, como Eduardo Lourenço assinala, «não por acaso são poetas e posteridade autêntica de Pessoa».
No mesmo “Suplemento Das Artes, Das Letras” de O Primeiro de Janeiro, mas oito anos antes, ou seja, em 9 de Agosto de 1944, aparece um dossier com o título “A ressurreição de Fernando Pessoa”. Dele constam, um autógrafo e dois poemas inéditos, um artigo anónimo intitulado “O Homem Universal” e ainda dois importantes textos “Carta ao Poeta” e “O mais português e universal dos poetas deste século”, assinados respectivamente por… Jorge de Sena e Adolfo Casais Monteiro. A curiosíssima carta de Jorge de Sena foi recolhida postumamente no I Volume de Fernando Pessoa & Cª Heterónima (Edições, 70, 1982, pp. 25-30), sendo por isso bastante conhecida. Nela encontramos, por exemplo, a recusa da tese segundo a qual a heteronímia é uma mistificação, recusa essa que Eduardo Lourenço retomará em Pessoa Revisitado.
 
Adolfo Casaes Monteiro


O ensaio de Casais Monteiro talvez tenha sido menos divulgado. Não se encontra, pelo menos, no livro, também ele póstumo, A Poesia de Fernando Pessoa, organizado por José Blanco (Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1985, 2ª edª). É, de facto, pena, pois “O mais português e universal dos poetas deste século” revela imensas qualidades, a menos importante das quais será a precocidade de algumas das suas teses. Sobretudo se se atender à época em que foi publicado. Por um lado, Casais Monteiro afirma que, na poesia de Pessoa, se se descontar «o quanto há nela de positivo (…), quer no seu nacionalismo sebastianista, quer no seu ocultismo, (…) tudo o mais é dúvida, angústia, desânimo, ou então a doçura que uma sensibilidade excepcional chega a encontrar na ausência de qualquer amarra forte que a prenda ao mundo». Por outro lado, o autor de A palavra essencial debruça-se sobre algumas das críticas dirigidas a Pessoa, a saber: o seu decadentismo burguês. O modo como o faz é pouco menos que categórico: «É um grave erro esperar da poesia que nos indique caminhos para qualquer parte, que nos dê a solução de problemas, etc. Além do essencial, que é bela por si mesma, o enriquecimento que nos pode vir da poesia será antes de o de nos ajudar a ser quem somos, isto é, ajudar-nos a ver melhor para dentro de nós próprios, graças à luz que da poesia como que se reflecte para as nossas profundezas. De não se entender assim resulta, por exemplo, aquele erro tantas vezes cometido de se desvalorizar uma obra poética por ela ser decadente, ou doentia, ou imoral, e coisas assim; como por não ser forte, ou optimista, ou construtiva, e assim sucessivamente. O facto é que o verdadeiro leitor dos poetas nunca reage em função de tais exigências; e a mais ‘decadente’ das poesias pode dar-lhe a mesma intensidade de emoção que o mais candente hino à vida. Quer isto dizer que a intensidade da emoção do leitor verdadeiro não está em função do valor de aplicação à acção da poesia, mas sim da realidade por ela expressa».
Nestas palavras de Casais Monteiro ecoam, sem dúvida, elementos fortes da estética presencista (por muito difícil que seja falar em uma estética da presença), mas, ao mesmo tempo, elas parecem começar a abrir «em nós avenidas para nenhum jardim», caso se queira retomar a magnífica expressão de Pessoa Revisitado. Neste livro, significativamente dedicado à sua Mulher, Annie, e a Adolfo Casais Monteiro, e em quase tudo o que escreveu sobre Fernando Pessoa, Eduardo Lourenço retirará múltiplas consequências filosóficas destas intuições que os seus Amigos Poetas tão matinalmente arriscaram. Daí não se infira que Eduardo Lourenço não leu diferentemente Pessoa. Claro que leu e, por isso, nem sempre concordou com Jorge de Sena e Casais Monteiro. Mas fê-lo porque estes, antes dele, souberam e puderam ver, no autor de Tabacaria, “O mais português e universal dos poetas deste século”. E isso, em 1944 pelo menos, estava longe de ser uma evidência. Menos para Sena e para Casaes que, como diz Eduardo Lourenço, não por acaso são poetas.