quinta-feira, 22 de maio de 2014

Gerações e utopias censuradas

Vergílio Ferreira
Se calhar as coisas não poderiam ter seguido um rumo diferente. Contudo, quem conheceu o jornal Público nos seus momentos iniciais e o lê agora, nestes tempos que parecem de desencanto sem remédio, sente uma quase inevitável amargura. O número de páginas diminuiu consideravelmente. Os cronistas não são já os mesmos ou, quando o são, parecem, eles também, sofrido um indisfarçável desgaste. Mesmo assim, o  Público mantém traços que fazem dele um caso singular na imprensa portuguesa. É o caso, sem dúvida, da imprescindível colecção Livros Proíbidos que, desde Abril e até Julho, tem recuperado um precioso conjunto de títulos que sofreram a interdição da censura, instrumento tão repugnante quanto decisivo do Estado Novo. Ao indiscutível interesse histórico desta série, que nos faz regressar a um tempo e a uma mentalidade tão longínquos e, paradoxalmente, tão próximos, junta-se a soberana oportunidade de descobrir ou reencontrar livros há muito afastados das livrarias (não será esta uma nova forma de censura?). É o caso do romance Vagão 'J' de Vergílio Ferreira editado e censurado em 1947. Dir-se-á que este não é um dos melhores romances do autor de Aparição e esta é uma tese dificilmente refutável. No entanto, é possível que as desgraças e as contradições da família Borralho («a família mais asquerosa do povoado», para usar a expressão do não menos asqueroso documento que justifica a proibição do livro) revelem já alguns sinais da saída de Vergílio de uma geração a que Eduardo Lourenço chamou a da utopia. Não por acaso, como lembra Helder Godinho, em texto que ontem apresentava esta reedição, «Vagão 'J' foi o único dos três romances da chamada fase neo-realista de Vergílio Ferreira que o autor decidiu republicar mais tarde» (Palavras que dizem e organizam o mundo”, Público, 21/V/2014, p. 47). Sobre Vergílio e as suas relações com a geração da utopia talvez valha a pena regressar às magníficas páginas, escritas ao longo de mais de trinta anos e que Eduardo Lourenço reuniu em O Canto do Signo (Lisboa, Presença, 1993), de que a seguir se reproduzem alguns excertos.




«(…) Uma “geração” autêntica, mesmo em sentido restrito, é mais rara do que se pensa. O que assim se denomina é ramagem ou sub-rama­gem de uma “geração”, de uma insólita eclosão espiritual e histórica. A quantas “adolescências” tocou como dádiva um tempo e um lugar em que a realidade humana se levantou dois dedos acima de si mesma?
A “adolescência” é dada, pertence ao reino da natureza. A “geração” é merecida, conquistada, guardada através de um perpétuo combate ou tristemente falhada. Pertence ao mundo propriamente humano da história e do espírito (pp. 83-84)».
«Todos os jovens camaradas de Vergílio Ferreira tiveram como ele a possibilidade de se não perder, mas poucos possuíam tantos meios para se salvar. Uma sólida e extensa cultura humanística coloca-o muito cedo ao abrigo de soluções verbais simplistas ou simplistamente vividas. Contudo, a mais decisiva das suas defesas foi, porventura, a experiência contada em Manhã Submersa. É uma das mais comuns aventuras essa do adolescente português a braços com um tipo de educação muito particular. Tal como é contada em Manhã Submersa essa aventura é uma verdadeira experiência da “morte de Deus”, pelo menos sob a forma histórica que a vivência religiosa assume na sociedade portu­guesa. Tal decepção foi vivida na sua dupla forma – contemplação do vazio por ela criado em sua alma adolescente e desejo de preencher de novo o lugar do deus morto. Aparentemente, e isso aconteceu a mui­tos, Vergílio Ferreira ficou à mercê da primeira idolatria. Ela surgiu, no plano intelectual, sob a forma de uma ideologia capaz de beber como uma esponja a antiga dor do homem e o mistério da vida. É de louvar que Vergílio Ferreira, como muitos outros jovens coerentes e honestos, a tenham preferido ao estéril ruminar de um cepticismo sem grandeza e sem risco ou a um indiferentismo que perpetua na impotência um mal com a nossa própria figura. Mas aqueles a que Deus morreu não podem aceitar, com a facilidade dos outros, deuses subalternos, mil vezes mais dispensáveis (87-88)».
«[Onde tudo foi morrendo, Vagão J, Manhã Submersa]Todos estes romances são ainda romances em primeiro grau, per­feitamente clássicos. A relação do personagem-narrador ao mundo pode ser diversa, como diverso também o olhar pousado sobre o mundo, como mundo exterior ou sociedade em crise, utopicamente imaginados como susceptíveis de uma redenção de perfil social na primeira fase ou metafísica na segunda. Todavia, a relação do narrador com a sua própria nar­ração e ainda menos com a sua escrita não estão ainda verdadeiramente em causa (124)».