domingo, 6 de abril de 2014

Pseudo-Dionísio, a tortura e a política


É natural que os leitores do Público, ao confrontarem-se com a capa do jornal deste domingo, tenham feito uma interpretação estritamente política, senão mesmo partidária, do facto de Eduardo Lourenço ter redigido o posfácio da segunda edição (poder-se-á falar mesmo em best-seller à nossa escala?) do livro de José Sócrates A confiança no mundo – sobre a tolerância no mundo, cujo novo lançamento se anuncia para o próximo dia 16. A tentação de associar este posfácio à notícia da inclusão do ensaísta, num não-elegível mas altamente simbólico último lugar, nas listas do PS para as eleições europeias do próximo mês, é, por outro lado, quase irreprimível. Tanto mais que foram escassíssimas as declarações públicas e políticas de Eduardo Lourenço acerca da governação e do seu legado do antigo primeiro-ministro socialista. No entanto, seria uma pena que “O desejo amoroso do mal”, título do posfácio, hoje apresentado em pré-divulgação no Público, fosse lido num âmbito exclusivamente – e imediatamente – político. Claro que seria também uma ingenuidade enorme e indesculpável não sublinhar que o autor de A confiança no mundo é também, para o bem e para o mal (não é este o lugar nem a ocasião para proferir juízos acerca deste assunto, como é óbvio), uma das personagens mais decisivas da nossa vida pública dos últimos anos. Mesmo que no posfácio se fale apenas (ou, talvez melhor, a pretexto) da famosa tese de mestrado parisiense, o facto de ele ser isso mesmo, um posfácio, implica desde logo uma tomada de posição. Como o foram também tomadas de posição, noutros contextos e com outros protagonistas, quando Eduardo Lourenço prefaciou livros de autores tão diferentes entre si como Otelo de Saraiva de Carvalho (neste caso, por duas vezes, em 1977 e em 2011), D. José Policarpo, Francisco Lucas Pires ou Lourdes Pintasilgo.

Pseudo-Dionísio (século VI)

Dito isto, importa referir o mais importante. “O desejo amoroso do mal” é um magnífico ensaio. Talvez mesmo um dos melhores que Eduardo Lourenço escreveu nos últimos tempos. Partindo de um conceito repescado em Pseudo-Dionísio Areopagita (e não Aeropagita, como erroneamente aparece no jornal), precisamente esse humano «desejo amoroso do mal», o ensaísta discorre sobre o tema escolhido pelo antigo governante para a sua tese de mestrado. Fá-lo sem nunca se pronunciar directamente sobre o livro que, nesta sua segunda edição, acrescenta ao prefácio do antigo presidente brasileiro, Lula da Silva, o texto de encerramento de Eduardo Lourenço. Se outros méritos e vantagens não tivesse tido, a ida de Sócrates para a Paris veio, pelo menos indirectamente, a ser a razão de podermos ler frases iluminantes como estas (e que, de certa maneira, remetem para outros textos do ensaísta, como, por exemplo, os que integram O Esplendor do Caos) com que o (futuramente célebre?) posfácio termina :
«A Humanidade nunca esteve nem está para além do Bem e do Mal. Essa divisão é o enjeu da pulsão definidora do que nós somos como seres livres pelo que nos perde ou misteriosamente nos salva. A História – se esse fantasma existe como auto-retrato da nossa alma, pessoal ou colectiva – é um eterno e nunca gasto combate para separar em nós e no mundo o que nos humaniza do que nos remete para a condição impensável mas nunca extinta do inumano. A barbárie – e entre ela a que a tortura exemplifica – é só a prova do que nos custa estar à altura da nossa vocação de superar a inumanidade de que somos parte e nos tornar os meros seres humanos que nos propomos ser».

Eduardo Lourenço e as próximas eleições europeias: «sou uma espécie de candidato póstumo», afirmou recentemente em Coimbra.