É natural que os leitores do Público,
ao confrontarem-se com a capa do jornal deste domingo, tenham feito uma
interpretação estritamente política, senão mesmo partidária, do facto de
Eduardo Lourenço ter redigido o posfácio da segunda edição (poder-se-á falar
mesmo em best-seller à nossa escala?)
do livro de José Sócrates A confiança no
mundo – sobre a tolerância no mundo, cujo novo lançamento se anuncia para o
próximo dia 16. A tentação de associar este posfácio à notícia da inclusão do
ensaísta, num não-elegível mas altamente simbólico último lugar, nas listas do
PS para as eleições europeias do próximo mês, é, por outro lado, quase
irreprimível. Tanto mais que foram escassíssimas as declarações públicas e
políticas de Eduardo Lourenço acerca da governação e do seu legado do antigo
primeiro-ministro socialista. No entanto, seria uma pena que “O desejo amoroso
do mal”, título do posfácio, hoje apresentado em pré-divulgação no Público, fosse lido num âmbito exclusivamente
– e imediatamente – político. Claro que seria também uma ingenuidade enorme e
indesculpável não sublinhar que o autor de A
confiança no mundo é também, para o bem e para o mal (não é este o lugar
nem a ocasião para proferir juízos acerca deste assunto, como é óbvio), uma das
personagens mais decisivas da nossa vida pública dos últimos anos. Mesmo que no
posfácio se fale apenas (ou, talvez melhor, a pretexto) da famosa tese de
mestrado parisiense, o facto de ele ser isso mesmo, um posfácio, implica desde
logo uma tomada de posição. Como o foram também tomadas de posição, noutros
contextos e com outros protagonistas, quando Eduardo Lourenço prefaciou livros
de autores tão diferentes entre si como Otelo de Saraiva de Carvalho (neste
caso, por duas vezes, em 1977 e em 2011), D. José Policarpo, Francisco Lucas
Pires ou Lourdes Pintasilgo.
Pseudo-Dionísio (século VI) |
Dito isto, importa referir o mais importante. “O desejo amoroso do mal” é
um magnífico ensaio. Talvez mesmo um dos melhores que Eduardo Lourenço escreveu
nos últimos tempos. Partindo de um conceito repescado em Pseudo-Dionísio Areopagita
(e não Aeropagita, como erroneamente aparece no jornal), precisamente esse humano
«desejo amoroso do mal», o ensaísta discorre sobre o tema escolhido pelo antigo
governante para a sua tese de mestrado. Fá-lo sem nunca se pronunciar
directamente sobre o livro que, nesta sua segunda edição, acrescenta ao
prefácio do antigo presidente brasileiro, Lula da Silva, o texto de
encerramento de Eduardo Lourenço. Se outros méritos e vantagens não tivesse
tido, a ida de Sócrates para a Paris veio, pelo menos indirectamente, a ser a
razão de podermos ler frases iluminantes como estas (e que, de certa maneira,
remetem para outros textos do ensaísta, como, por exemplo, os que integram O Esplendor do Caos) com que o (futuramente célebre?) posfácio
termina :
«A Humanidade nunca esteve nem está para além do Bem e do Mal. Essa divisão
é o enjeu da pulsão definidora do que
nós somos como seres livres pelo que nos perde ou misteriosamente nos salva. A
História – se esse fantasma existe como auto-retrato da nossa alma, pessoal ou
colectiva – é um eterno e nunca gasto combate para separar em nós e no mundo o
que nos humaniza do que nos remete para a condição impensável mas nunca extinta
do inumano. A barbárie – e entre ela a que a tortura exemplifica – é só a prova do que nos custa estar à altura
da nossa vocação de superar a inumanidade de que somos parte e nos tornar os meros seres humanos que nos propomos
ser».
Eduardo Lourenço e as próximas eleições europeias: «sou uma espécie de candidato póstumo», afirmou recentemente em Coimbra. |