por Ana Luísa Amaral*
Para Eduardo Lourenço, que destas coisas sabe como pouca gente.
Como sempre soube ser gente inteira,
de uma maneira tal que muito pouca gente.
Por mim e por nós todos, obrigada – ana luísa
O NEVOEIRO
Comecei a formar-me
a partir do mito
Sabia-me água
condensada entre o mar e o céu,
mas pouco mais me sabia,
até ouvir dizer, muito em baixo e ao fundo,
sobre a sua vinda
Aprendi-lhes as palavras
e a ler o que diziam
Que ele desaparecera junto a longa batalha,
abandonando o galgo que lhe era companheiro.
E mais diziam:
que, com ele, entre a fé cega e o sonho,
haviam ido também
os de olhos mais de luz
Muito mais tarde, havia eu de ouvir
que esses de olhos de luz:
dos que não tinham nunca lutado pelo pão
por uma terra sua,
e que ser de mais luz e ter mais sonhos
vive na proporção das moedas
que povoam os bolsos
Não me viam, os seus olhos cegos,
entre o ardor e o rugir da batalha
E eu soube sempre,
mesmo quando era só água em finíssimos átomos,
espalhada pelo céu e rente ao mar,
que ser mais poderoso ou menos poderoso:
uma deslocação de ar
sem peso que contasse
Nunca o vi, a ele,
antes de me ver eu feito nevoeiro,
e ele continua a ser-me
leve sombra sem corpo
Formei-me a partir de uma península,
e fui avançando devagar,
cobrindo tudo,
ano após ano,
século após século,
com ele atravessando-me o corpo,
o seu corpo e o meu sem formas definidas
Se eu não existisse,
ele não existia,
e ainda hoje de vez em quando
se ouve dele falar,
com outras formas, outros nomes,
um ser vindo de outras paragens
Era preciso o brilho de um farol
de linhas sólidas e unidas
para que eu desaparecesse
para sempre do mito
Mas o farol não há,
e eu habito entre tempos,
aprisionado a elipses de tempo,
e a ele,
os dois presos à história
Se ao menos esse galgo que ele amava
nos guiasse, por fim,
como fio ou farol,
para dentro do tempo
E eu voltasse a ser nuvem,
e ele, só imagem –
* Ana Luísa Amaral enviou para Ler Eduardo Lourenço este poema inédito, respondendo assim gentilmente ao convite feito pelo blog para participar na homenagem dedicada aos 90 anos do ensaísta. Infelizmente, por razões de força maior, o texto foi enviado fora do prazo previsto pelo que só agora é possível publicá-lo, muito agradecendo a generosidade e a simpatia da Poetisa, Escritora e Professora da Faculdade de Letras da Universidade do Porto.