O curiosíssimo quadro Os Críticos é apenas um dos múltiplos motivos que justificam uma visita à magnífica exposição retrospectiva de Nikias Skapinakis, patente por estes dias no Museu Berardo (Centro Cultural de Belém). Quem são os críticos sentados à mesa do café A Brasileira? Da esquerda para a direita, reconhecem-se Rui Mário Gonçalves, Francisco Bronze, Fernando Pernes e ... José-Augusto França. Já aqui se falou, há alguns meses, da amizade entre este último e Eduardo Lourenço de que a correspondência epistolar (naturalmente ainda inédita) será, com certeza, um impressionante testemunho. Esta ideia funda-se também nas cartas que ambos trocaram com um amigo comum, Jorge de Sena, e que se encontram reunidas em dois volumes editados pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda. Em 1991, apareceu a Correspondência Eduardo Lourenço/Jorge de Sena, que, não estando completa, foi enriquecida entretanto por novas cartas encontradas no Acervo Eduardo Lourenço, tal como aqui foi devidamente assinalado. Dezasseis anos volvidos, um novo volume é dado à estampa, desta vez com as cartas trocadas entre Jorge de Sena e José-Augusto França. Neste livro, as referências a Eduardo Lourenço são, como seria de esperar, mais do que muitas, todas elas expressando o afecto e a admiração que ambos sentem pelo amigo de Vence. Contudo, na missiva enviada de Monfortinho aos dois dias de Outubro de 1956, França dá conta a Sena de um episódio que Ler Eduardo Lourenço a seguir transcreve:
«Viu V. no Comércio [do Porto] umas notas irritadas, minhas, sobre surrealismo, a propósito dum sujeito dos Vértices que despejara uma antipática lição de papagaio amestrado contra a coisa? E reparou que acuso de pirismo cultural, a talho de foice, os que dizem sobrerealismo? Pois na mesmíssima página, o Costa Barreto não teve a habilidade de meter um (excelente) artigo do [Eduardo] Lourenço sobre Sobrerealismo e Filosofia? Acabei por cair na gargalhada, escrevi logo para Montpellier (tinha estado dias antes com ele, em Lisboa) e mais um bilhete-postal público a ele dirigido, a sair na página» (Jorge de Sena; José-Augusto França, Correspondência, p. 154). Refira-se que Montpellier era onde Eduardo Lourenço vivia então.
De que artigo se trata afinal? Publicado inicialmente a 25 de Setembro desse ano de 1956, no suplemento literário do Comércio do Porto, o texto comenta (embora, como é costume em Eduardo Lourenço, não seja apenas um mero comentário) uma obra de Ferdinand Alquié intitulada justamente Philosophie du Surréalisme. Daí o título do texto aparecido no Comércio e que pode agora ser encontrado no primeiro volume das Obras Completas de Eduardo Lourenço Heterodoxias.
Ora, este é um dos aspectos que provavelmente nem sempre tem merecido o destaque devido: o projecto da edição das Obras Completas, para além de dar a conhecer imenso material inédito (nunca é demais elogiar o trabalho de João Nuno Alçada neste domínio), está a recuperar um vastíssimo conjunto de ensaios que, não sendo originais, se encontravam há muito dispersos em publicações de difícil acesso ao leitor comum. É o caso deste Filosofia e Sobrerrealismo que, lido hoje, parece quase um texto novo. Registe-se, por fim, que José-Augusto França, para além de inverter a ordem dos conceitos do título, omite um r em Sobrerrealismo. Será esta pequena nuance suficiente para ilibar o amigo da involuntária acusação de pirismo cultural? Talvez não, mas isso realmente pouco importa. O artigo (cuja versão original adiante se reproduz, com o necessário pedido de descuplas pela deficiente qualidade da imagem...) é, de facto, excelente. E desde há alguns meses que não há razões para os leitores interessados na obra de Eduardo Lourenço o não conhecerem.