Fernando Guimarães (imagem retirada de http://paginaliterariadoporto.com) |
Eduardo Lourenço recolhe neste livro um conjunto de estudos que, publicados desde 1951 a 1974, define através dum percurso cheio de coerência e rara lucidez uma genérica concepcão dessa realidade ao mesmo tempo evidente e misteriosa que se pode designar – como o A. o faz – por «esfinge ou a poesia». Os próprios ensaios em que se aborda a poesia à luz da sua realização efectiva e histórica – alguns deles tendo alcançado um impacte tão significativo num reajustamento quanto a juízos de crítica literária, como aconteceu nomeadamente com “Presença ou a Contra-Revolução do Modernismo Português?”– não deixam de apontar para uma subjacente poética. Como poderíamos, então, caracterizá-la? É evidente que, nas suas reflexões sobre o poético, Eduardo Lourenço não é insensível à procura do nexus que religa a poesia à filosofia. Mas esta religação, a qual não está contaminada por urn mero filosofismo, tem que ser vista à luz do verdadeiro sentido que o A. lhe atribui. Ela não representa, ao contrário do quo acontece ocasionalmente com a crítica dum António Sérgio, a tentativa de reenviar a criação literária para uma «matriz conceptual» ou, também ao contrário do que ocorre com a crítica de inspiração neo-realista, para uma explicação ideológica. O que se tern em vista, segundo Eduardo Lourenço, é atingir uma certa «osmose com a obra de arte» (p. 22).
Ao recusar, com estas palavras, tanto uma historicidade como uma conceptualidade, ficaria o crítico circunscrito àquilo que hoje se designa por literariedade da obra? Nesse caso, o tal nexus estabelecer-se-ia, não entre poesia e filosofia, mas entre poesia e epistemologia, pois, efectivamente, desenhavam-se as condicões epistemológicas de acesso à produção poética através de modelos que explorariam sobretudo a poesia quanto à sua realidade não significativa mas significante. Em face duma metáfora, por exemplo, procurar-se-ia, em vez de se aprofundarem as mediações propostas pelo discurso significativo em que ela se situa, atingir tão-só o modelo subjacente que nos desviaria do próprio terreno do poético, entrevisto como se fosse uma essência, para o domínio mais geral e abstracto da poética.
Não é, todavia, nesta posição que Eduardo Lourenço se coloca. A sua persecução do poético tem, efectivamente, um valor ainda mais distanciado da literariedade que aquele que até certo ponto se pode verificar numa interpretação fenomenológica, que, aliás, o autor de Tempo e Poesia também não aceita («uma análise fenomenológica do poético [...] não poderá pôr-nos em contacto com a essência do poético», p. 79). A fenomenologia da obra literária propõe uma redução da sua realidade histórica ou psicológica; mas, como método, não vem formalizar o objecto que visa intencionalmente, pois nela se valoriza um conteúdo essencial. A intencionalidade é um caminho que não nos conduz a uma formalização tal como esta pode ser entendida a partir duma epistemologia actualizada. Não faz sentido, quanto à literariedade do texto, supor que duma essência se trata, porque tal literariedade vive apenas pelo modelo que permite conduzir-nos a uma informação, esta sim suficientemente formalizada, acerca desse texto.
Para além de afinidades que não deixam de ser evidentes, é este o corte que existe entre uma análise fenomenológica da obra literária e uma perspectiva estrutural aberta pela nova retórica ou poética. Não aceitando esta última forma de acesso à poesia – porque a valorização do lado significante da linguagem, mediante o qual uma formalização seria possível, exprimiria a «vontade de substituir a referência à Realidade» (p. 66) –, Eduardo Lourenço também não deixa de, como vimos, pôr reservas essenciais a uma interpretação fenomenológica.
Esta seria uma das metas, alcançada através da exegese filosófica, a que nos poderia arrastar uma concepção romântica da poesia. Com efeito, o Romantismo intentou «fazer da Poesia, não um absoluto entre outros, mas o absoluto que exclui os outros porque os supera» (p. 59). Neste momento, imobilizar-se-ia no seu seio qualquer possibilidade de mediação. O absoluto da poesia fechar-se-ia num irrealismo, porque nela acabava por se dissolver qualquer referência ao real, a uma transcendência. A poesia, fechando-se a tudo o que pudesse haver para além do próprio discurso poético, deixaria às palavras, como acusatoriamente Eduardo Lourenço diz, «a sua total solidão» (p. 240).
Ora o poético, a sua essência obtida fenomenologicamente, era do mesmo modo uma forma de solidão, separado como se encontrava da possibilidade mediadora que tem a linguagem sempre que é entrevista existencialmente pela sua referência à imaginação. E é neste apelo à dimensão imaginativa do homem, pela qual se faz uma religação deste ao mundo por meio da linguagem, que Eduardo Lourenço encontra razões para se separar da metodologia fenomenológica.
Existe uma essência do poético; mas essa essência, centrada na imaginação, é, não o pensamento pensado, mas aquele que se incarna no termo médio que representa o encontro – condensado na linguagem - do homem com a realidade. A poesia é, por conseguinte, «um absoluto de expressão» que todavia não se fecha em si mesmo porque se enraíza na «própria existência humana, inobjectivável sua essência» (p. 78).
Torna-se clara a posição que o A. sustenta. O imaginário, através da irredutível figura da poesia que é a linguagem, acaba por assumir um peso ontológico, por ser através dele que se faz uma referência ao mundo (ou, numa perspectiva heideggeriana que talvez Eduardo Lourenço não recuse, do mundo). Evita-se, assim, aquela «hipóstase de palavras» que traduz o esgotamento ou saciedade do «frio e circular exercício da “poesia da poesia” onde geralmente a poesia naufraga com armas e bagagens» (p. 258). Mas, por outro lado, ganha-se a favor da poesia a sua possibilidade de mediação. E esta última noção é fundamental na poética que Eduardo Lourenço sustenta, pois com o seu socorro é possível passar da estrutura da obra, cujo modelo seria o da linguagem, para o que Paul Ricoeur (La Métapbore Vive, 1975, p. 278) designa por «mundo da obra», na medida em que nesta há uma referência extra-linguística.
Eduardo Lourenço não recorre, como Ricoeur, à noção de hermenêutica para designar o mundo a que a obra de arte se refere (ou intende). Mas é sem dúvida sob uma forma de natureza hermenêutica herdada dos teorizadores das ciências do espírito ou culturais – numa posição que oscilaria entre a presença tutelar de Hegel e a de Dilthey – que se dá à poesia o poder de ser uma «incarnação sensível do Infinito no finito». E certo que o autor de Tempo e Poesia prefere modificar esta fórmula ao considerar antes a poesia como «incarnação sensível da impossibilidade de expressão do Infinito no finito» (p. 78); mas a tónica da alteração, é evidente, representa a desconfiança ante a possibilidade de objectivar, no campo do finito, a própria essência do homem, cuja disponibilidade encontraria na imaginação mais uma forma imprevisível daquele «combate do sonho com a realidade do homem a que o universo inteiro serve de matéria necessária» (p. 79), graças a um desdobramento existencial que o A. nunca se eximiu de valorizar.
Esta posição de Eduardo Lourenço não pode deixar de levantar – e, daí a sua ímpar fecundidade...– algumas questões fundamentais, como, por exemplo, a de saber até que ponto nos é possível garantir, apoiados em tal opção crítica, que não ocorra uma confusão possível entre o campo do imaginário (onde há muitos poços de ar como aqueles em que Bachelard de certo modo caiu) e o campo do simbólico verbal. Por outro lado, a estratégia de não identificar privilegiadamente o poema com o poético, ao nível das formas significances daquele, pode conduzir também ao perigo de se assimilar a passagem para a totalidade do discurso ou da criação literária a um certo isolamento, enquanto totalidade, dessa criação. O discurso passaria a não testemunhar a diferença – a nível de significantes – relativamente a outros discursos, graças a uma espécie de solidez que adquiriria mediante a valorização da sua função referencial, mesmo que esta se apresentasse – como Eduardo Lourenço defende – sob uma forma intrinsecamente ambígua.
Semelhante isolamento no mundo expressivo do discurso, pouco sensível aos prolongamentos que formalmente pode ter em relação a outros textos, acaba por contribuir para entrever certas rupturas e cortes que não deixaria de ser lícito interpretar de outra maneira. É o que parece acontecer no já citado estudo “Presença ou a Contra-Revolução do Modernismo Português?”. Assim, se há uma nítida solução de continuidade entre os poetas do Orpheu e os da Presença, talvez se possa não considerar a poesia daquele movimento como uma revolução – ponto de vista defendido por Eduardo Lourenço –, mas o momento numa evolução complexa que é sobretudo a herança do que o nosso Simbolismo conseguiu realizar no domínio duma linguagem cujas verdadeiras dimensões ganhariam em ser consideradas sem autor, isto é, pelo levantamento das suas possibilidades expressivas entrevistas através duma diferença definida estilística ou retoricamente.
Esta posição de Eduardo Lourenço não pode deixar de levantar – e, daí a sua ímpar fecundidade...– algumas questões fundamentais, como, por exemplo, a de saber até que ponto nos é possível garantir, apoiados em tal opção crítica, que não ocorra uma confusão possível entre o campo do imaginário (onde há muitos poços de ar como aqueles em que Bachelard de certo modo caiu) e o campo do simbólico verbal. Por outro lado, a estratégia de não identificar privilegiadamente o poema com o poético, ao nível das formas significances daquele, pode conduzir também ao perigo de se assimilar a passagem para a totalidade do discurso ou da criação literária a um certo isolamento, enquanto totalidade, dessa criação. O discurso passaria a não testemunhar a diferença – a nível de significantes – relativamente a outros discursos, graças a uma espécie de solidez que adquiriria mediante a valorização da sua função referencial, mesmo que esta se apresentasse – como Eduardo Lourenço defende – sob uma forma intrinsecamente ambígua.
Semelhante isolamento no mundo expressivo do discurso, pouco sensível aos prolongamentos que formalmente pode ter em relação a outros textos, acaba por contribuir para entrever certas rupturas e cortes que não deixaria de ser lícito interpretar de outra maneira. É o que parece acontecer no já citado estudo “Presença ou a Contra-Revolução do Modernismo Português?”. Assim, se há uma nítida solução de continuidade entre os poetas do Orpheu e os da Presença, talvez se possa não considerar a poesia daquele movimento como uma revolução – ponto de vista defendido por Eduardo Lourenço –, mas o momento numa evolução complexa que é sobretudo a herança do que o nosso Simbolismo conseguiu realizar no domínio duma linguagem cujas verdadeiras dimensões ganhariam em ser consideradas sem autor, isto é, pelo levantamento das suas possibilidades expressivas entrevistas através duma diferença definida estilística ou retoricamente.
* O texto que, com a devida vénia, Ler Eduardo Lourenço hoje reproduz corresponde a uma recensão crítica à primeira edição de Tempo e Poesia, assinada por Fernando Guimarães e publicada no nº 31 da revista Colóquio-Letras (Maio de 1976, pp. 90-92). Ao recuperar este magnífico (até pelas questões que levanta...) texto de Fernando Guimarães, Ler Eduardo Lourenço visa dois objectivos. Por um lado, anunciar a cada vez próxima edição do III volume das Obras Completa, que é organizado por Carlos Mendes de Sousa (também o prefaciador do volume) em torno precisamente do livro Tempo e Poesia, mas que integra muitos outros ensaios, grande parte inéditos, que Eduardo Lourenço dedicou à poesia e a imensos poetas portugueses contemporâneos. Por outro lado, Ler Eduardo Lourenço assinala também a singular leitura que Fernando Guimarães tem vindo, desde há muito, a fazer do ensaísmo poético do autor de Pessoa Revisitado. A importância da obra de Fernando Guimarães é sobejamente reconhecida nas suas múltiplas dimensões: poesia, crítica e ensaio. Para além disso, e este é um pormenor talvez menos divulgado, Fernando Guimarães chegou a ser aluno de Eduardo Lourenço no curso de Ciências Histórico-Filosóficas na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, numa época em que o autor de Tempo e Poesia desempenhava aí as funções de Assistente.