por João Nuno Alçada
No microcaos do microcosmo que é todo o Acervo ainda por organizar de um escritor, raramente no início da sua catalogação se pode dar conta da importância em como certos elementos, ou certos sectores dessa documentação, podem ser capazes de nos indicar uma teia de factos e de informações entre si, que se revelam da maior importância para reconstruir no tempo e a posteriori, momentos especiais, condicionalismos, motivações, dúvidas, oportunidades de publicação, etc. que poderiam ter estado na génese de um ou de outro texto.
No caso da correspondência do autor (recebida/enviada) há geralmente um elemento que falta nesse Acervo pois quase sempre não existe cópia da documentação enviada a tal ou tal destinatário. Várias vezes nos interrogámos onde poderá estar depositado o espólio da correspondência que pertenceu a Costa Barreto, figura cuja importância foi decisiva na publicação persistente e metódica, contra ventos e marés dos condicionalismos da época, do Suplemento “Cultura e Arte” do Comércio do Porto e cujo nome foi já evocado neste blogue (cf. número anterior desta série).
O Suplemento “Cultura e Arte” era também um espaço de debate onde se confrontavam diferentes perspectivas literárias e estéticas,
como é o caso da polémica que Eduardo Lourenço manteve em 1962 com Roberto Nobre acerca de Ingmar Bergman.
Em cima reproduz-se o artigo de Eduardo Lourenço publicado na página 6 de O Comércio do Porto de 23 de Outubro desse mesmo ano
Costa Barreto organizou várias antologias a que deu o título de
Estrada Larga onde incluiu os melhores textos publicados no suplemento .
No Acervo de Eduardo Lourenço, até à presente data, foi possível reunir e inventariar as cartas, na sua maioria postais de correio, que Costa Barreto lhe enviou no período que vai de 15/II/1955 a 6/II/1973. Esta parece ser a data do “último postal”, conforme Eduardo Lourenço anotará junto do remetente do postal em que Costa Barreto escreve: «Meu bom e querido Amigo: A sólida estima e a grande admiração que tenho por si obrigam-me a continuar a instar consigo. De resto, o Suplº precisa mais do que nunca da sua presença como motivo de equilíbrio e interesse. Peço-lhe pois para me remeter um artigo até ao fim do corrente mês. Posso contar desta vez consigo? Não me desiluda…Abraça-o o Amigo, dedicado e sempre ao dispor, Costa Barreto.»
Reprodução do último postal enviado por Costa Barreto a Eduardo Lourenço com a data de 6 de Fevereiro de 1973
Mas pergunta-se: as cartas que Eduardo Lourenço lhe dirigiu e que ele classifica como “deliciosas” («as suas cartas são deliciosas e só tenho pena de não poder responder-lhes integralmente», 8/2/1960), essas cartas onde estão?
Oxalá se encontre uma resposta pois se esta correspondência, um dia, fôr publicada na íntegra será possível reconstituir melhor o iter do diálogo de uma colaboração literária privilegiada para o Suplemento de O Comércio do Porto e que, nesses anos, foi muito importante para Eduardo Lourenço aparentemente afastado da “realidade” dos meios literários nacionais da qual pontualmente Costa Barreto lhe dava ecos, acompanhando os pedidos constantes de colaboração, a lembrança de prazos ultrapassados, as sugestões para um novo ensaio.
A título de curiosidade transcrevem-se certos excertos dessa correspondência; «Gostaria de passar a colaborador periódico do Suplemento? Enviar-me-ia 6 artigos por ano» (27/1/1956); «Venho lembrar-lhe a sua prometida colaboração e, em especial, o artigo relativo ao Sampaio Bruno e Álvaro Ribeiro» (2/11/1956); «Os seus artigos agradam a um largo sector e eu gostaria, por isso, de continuar a inseri-los. Quando me manda, portanto, mais algum?» (28/6/1956); «O José Marinho deu por paus e por pedras com o seu artigo sobre o Álvaro Ribeiro. Chegou mesmo a pedir-me a sua direcção para lhe escrever» (30/3/1957); «Meu bom Amigo: Escrevo-lhe a correr para lhe dar a triste notícia de que a Censura, após ter suspendido o seu artigo sobre o Lorca, acabou por cortá-lo» (4/7/1957); «O artigo do Camus saiu o mês passado» (19/12/1957); «Nunca mais tive notícias suas […] preciso de saber se posso ou não contar consigo» (30/1/1958).
Eduardo Lourenço, por vezes, recorre também aos bons serviços deste correspondente como é o caso que se aborda nas duas cartas que se transcrevem. Ocupado com a organização do IV Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros, diligencia junto de Costa Barreto para que fosse dado realce ao evento, publicitando-o no Suplemento do Comércio do Porto e, mais tarde, que fosse ele a enviar alguns convites a destinatários dos quais, estando na Bahia, não conhecia bem o endereço.
Duas Cartas de Costa Barreto
6/II/958
Meu bom e Ex-mo Amigo:
Recebi há dias a circular sobre o IV Colóquio e dou já na próxima terça, desenvolvida, a notícia. Pena tenho de não aproveitar. Mas a viagem custa uns patacos largos…
Estou espantado consigo. Nunca deu mais sinal de si, isto é, nunca mais me enviou colaboração. Ora os seus artigos fazem muita falta ao Supl.º. O último, sobre Arte Abstracta, foi uma autêntica bomba. Nem você imagina a projecção que teve. Não se falava de outra coisa. Peço-lhe pois, pelas alminhas, para me mandar de quando em quando um artigo. Conto com isso.
Aproveito, entretanto, a oportunidade para lhe lembrar que, principalmente, estou a todo o momento à espera de receber a sua Panorâmica sobre a Poesia da Presença. Já tenho o resto do material nas minhas mãos. Assim, o caso está só preso por si. Manda-ma em breve, sim? Por Deus não me encrave.
O 2º vol. da “Estrada Larga” sobre artes plásticas, vai entrar no prelo. Estou a dar os últimos toques no original. […]
Abraça-o o Amigo, grato e sempre ás ordens
Costa Barreto
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Vila Barreto
Valbom-Gondomar
Portugal, 21/2/959
Meu bom e Ex.mo Amigo
[…] O seu artigo sobre a Presença é uma coisa notabilíssima. O nº especial ainda não saiu, porque, como sempre, nem todos ainda fizeram entrega dos respectivos artigos. Vamos a ver se a coisa é dada à luz. De resto, por ter sido muito instado, alargar-se-á o assunto a toda a poesia Post-Orpheu, publicando-se a coisa em 2 séries: a primeira, como já está, e a segunda referente aos anos 40/58. Para esta última, é vontade geral que você faça um novo artigo, a estudar a poesia de: Jorge de Sena, Sofia Andersen e Eugénio de Andrade. Poderá ser? Se assim for, meta já mãos à obra.
O Suplº tem-lhe sido sempre enviado por via marítima. E se não chega às suas mãos é porque alguém se abotoa aí com ele. Veja se averigua e mande-me dizer.
[…] As cartas do Colóquio que me remeteu ao m/cuidado seguiram todas ao seu destino. Penso, porém, que vocês não terão aí ninguém ou quase ninguém. Vontade não falta para ir aí. Mas as viagens – o principal – são incomportáveis para as magríssimas bolsas dos escritores portugueses. Porque é que não conseguem que o Governo brasileiro arque com elas? Se isso sucedesse, eu seria um dos que aproveitaria. Pensem no assunto.
E por hoje, manda-lhe um grande abraço o Amigo grato e sempre ao dispor
Costa Barreto
PS. Mande-me um artigo vulgar!
Cumprimentos respeitosos a s/ Ex.ma Esposa