quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Sob um céu de uma transparência perfeita, a metáfora apocalíptica ganhou um sentido literal?

O céu de Belo Horizonte (imagem recolhida em rumositaucultural.files.wordpress.com)
O Canto do Signo (1995) é, na vasta produção bibliográfica de Eduardo Lourenço, um caso singular a vários títulos. Publicado num período paradoxal da carreira do ensaísta em que, por um lado, obteve um forte reconhecimento internacional através da atribuição do Prémio Europeu de Ensaio Charles Veillon, mas, por outro, não tinha contrato com nenhuma casa editorial, o livro aparece nas livrarias com a chancela da Editorial Presença e, caso surpreendente, é possível ainda encontrá-lo a venda em bastantes sítios, pois a tiragem inicial nunca se esgotou e, por isso, o volume jamais conheceu reimpressão. Trata-se de um período em que as obras de Eduardo Lourenço são publicadas de modo algo disperso, quase aleatório: é também esse o caso de A Europa Desencantada (Visão, 1994), vários anos mais tarde reeditado pela Gradiva.
Ainda assim, o acolhimento de O Canto do Signo por parte da crítica foi bastante positivo, tendo o livro recebido o Prémio D.Dinis de Ensaio. Muito recentemente, um dos mais destacados jovens críticos literários portugueses afirmou mesmo que O Canto do Signo é o mais importante livro de crítica literária da segunda metade do século passado. A tese (como todas, aliás) é discutível, porquanto, embora as aparências possam sugerir o contrário, o livro talvez seja, antes de mais, a proposta (bem sucedida? isso é outra questão...) de um discurso que visa chegar a um território novo, sem os constrangimentos da crítica - pelo menos, tal como foi classicamente entendida. Será que um texto de anti-crítica literária é ainda crítica literária, sobretudo num tempo em que, como se pode ler em O Canto do Signo, há uma «crise geral da consciência judicativa contemporânea» (p. 15)?
A que vem esta revisitação de um livro publicado há precisamente vinte anos? Apesar de nunca faltarem motivos para falar de um livro tão rico e interessante como este, a verdade é que Ler Eduardo Lourenço, em conimbricense deambulação estival por um alfarrabista, tropeçou num curioso volume que responde por este nome: VII Encontro Nacional Professores Universitários Brasileiros de Literatura Portuguesa - Anais (Belo Horizonte, Centro de Estudos Portugueses da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minais Gerais, 1979). O título não mente. São mesmo as actas de um congresso no qual participaram, entre muitos outros, Lélia Parreira Duarte (coordenadora do evento), Adélia Prado, Arnaldo Saraiva, Leodegário A. de Amarante Filho, Eduardo Prado Coelho, Jorge Fernandes da Silveira, Nádia Gotlid e ... Eduardo Lourenço que proferiu a conferência de abertura que no índice aparece como “A Cultura Portuguesa Atual e o Estudo da Literatura Portuguesa”. No entanto, o sub-título que encima a página 24 destes Anais esclarece as dúvidas: “Con-texto cultural e novo texto português”. Ora, um dos capítulos de O Canto do Signo tem precisamente o nome de “Contexto Cultural e novo Texto Português” e termina com a seguinte e preciosa indicação: S. Pedro do Rio Seco, 24 de Julho de 1979. Não há motivo para espanto porque em 19 de Agosto desse mesmo ano, pelas 10 horas da manhã, Eduardo Lourenço leu o texto que escrevera cerca de três semanas antes na sua terra natal, onde provavelmente terá ido passar alguns dias de férias. É realmente um belo ensaio, no qual comparecem personagens cuja afinidade à primeira vista pareceria no mínimo abusiva. No entanto, com a elegância habitual, o ensaísta consegue relacionar Leibniz e Hegel com Llansol ou com o surpreendente Dinis Machado que, à época, acabara de publicar o (sobretudo na época) famoso O que diz Molero.
Leibniz...
... e Dinis Machado
As versões do texto não são, contudo, absolutamente coincidentes, porque, logo depois da epígrafe (as epígrafes escolhidas por Eduardo Lourenço estão muito longe de ser, como se sabe, uma dimensão secundária da sua escrita...) extraída de O Livro das Comunidades de Maria Gabriela Llansol, nos Anais aparece uma frase algo enigmática – que, de resto, já não consta da versão em O Canto do Signo – que surpreende o leitor: «Sim, senhor, as pessoas pedem para eu ser mais claro. Como? O que espero é ver a verdade apocalíptica ganhar um sentido literal» (p. 24). A Ata da Sessão, que aparece logo a seguir ao texto da conferência nos Anais, não resolve o enigma* (embora lance a pista de que a metáfora apocalíptica de que se fala tenha a ver com a obra de Herberto Helder**), mas quer as perguntas dirigidas a Eduardo Lourenço, quer as respostas do ensaísta, justificam uma leitura atenta das páginas 27 a 30. De resto, todo o volume dos Anais é bem interessante dando expressão à ideia de que a quantidade e a qualidade de investigações sobre literatura portuguesa realizadas por académicos brasileiros é já uma tradição bem enraizada.
O VII Encontro, que contou com a presença de 180 de professores de Literatura Portuguesa, terminou com uma sessão na qual participou, em representação da embaixada lusitana, Eduardo Lourenço que resumiu o sentimento dos seus colegas e compatriotas: «Para todos nós, além de uma honra foi um grande prazer avivar laços intelectuais e efectivos que sabemos existirem um pouco abstractamente entre os nossos dois povos e as nossas culturas. Durante três rápidos dias, sob um céu de uma transparência quase perfeita, acompanhados pela solicitude dos nossos anfitriões e em particular pelo sorriso discreto da Professora Lélia Duarte, todos nós pudemos reforçar não só esses laços, como comungar naquilo que nos é comum, a compreensão, vivência e admiração por obras e textos onde se exprime o que de melhor existe no espírito do povo a que pertencemos» (p. 258).

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*Já depois de publicado este post, uma grande amiga e pacientíssima visitante de Ler Eduardo Lourenço chamou a atenção, com a sua costumada perspicácia e sensibilidade, para o facto da enigmática frase ser, em rigor, uma citação (que seria, muito provavelmente, a segunda epígrafe do ensaio de Eduardo Lourenço, pelo menos na versão que terá sido lida em Belo Horizonte) de Photomaton & Vox de Herberto Helder (Assírio & Alvim, 1979). Na segunda edição do livro (Assírio & Alvim, 1987), a referida frase aparece na p. 27. Aqui fica, pois, o devido agradecimento pela ajuda na resolução do enigma. Ou, pelo menos, de parte dele. É que fica ainda por explicar o desaparecimento da epígrafe herbertiana na versão do texto em O Canto do Signo, tanto mais que a breve referência à obra do poeta de Ofício Cantante em “Contexto Cultural e novo Texto Português” é meramente circunstancial.

** Nessa Ata da Sessão, que não vem assinada mas que se depreende ter sido redigida por Irene Lima Marques e Ana Maria de Almeida, na qualidade de secretárias da Sessão, aparece um resumo das respostas de Eduardo Lourenço, do qual se pode destacar o seguinte excerto: «Em Herberto Helder encontra-se a referência à metáfora apocalíptica: o autor espera que esta metáfora, substitutiva da transparência exigida do texto literário, alcance “um sentido literal” (p. 28).»