domingo, 28 de setembro de 2014

Um outro poema ao lado do poema*

Lídia Jorge e Frei Bento Domingues hoje no Público

«Lídia Jorge: Porque o encanta a literatura? Não parece encantar tanta gente assim. 
 Frei Bento Domingues: Porque através dela se entra numa zona de nós que é reconhecida e ao mesmo tempo posta em causa. A literatura é um modo de pôr em causa. O Eduardo Lourenço diz que o comentário do poema só pode ser o poema. Ele, quando comenta, não explica. Ele faz um outro poema ao lado do poema. Só assim se entende a literatura, a pintura, ou a música, vivendo por dentro, pondo o nosso mundo em questão. A arte serve para isso.» 






*Excerto da entrevista realizada por Lídia Jorge a Frei Bento Domingues hoje no jornal Público.
http://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/estou-no-meio-do-misterio-1670822

terça-feira, 23 de setembro de 2014

Eduardo critica Eduardo

Sentido e Forma da Poesia Neo-Realista (capa da primeira edição, 1968)
Desde a sua primeira edição, surgida em 1968, que Sentido e Forma da Poesia Neo-Realista de Eduardo Lourenço parece ter merecido larga atenção da crítica. De facto, na imprensa do Porto e de Lisboa da época foram diversas as referências ao livro de um autor que, também (mas não só) por viver em França, não tinha o reconhecimento de que hoje indiscutivelmente goza na vida cultural portuguesa. Sem qualquer preocupação de exaustividade, é possível recordar algumas das recensões, mais ou menos críticas (embora quase sempre elogiosas) que apareceram nas páginas literárias e nas revistas do segundo semestre do ano que, em Paris, deu um novo sentido à palavra Maio. Dessas leituras (cujo interesse, qualidade e importância não é, evidentemente, sempre o mesmo) daqui se dará hoje da efectuada por Eduardo Prado Coelho, celebrando-se assim a novíssima edição do II Volume das Obras Completas de Eduardo Lourenço, Sentido e Forma da Poesia Neo-Realista e outros ensaios (Lisboa, Gulbenkian, 2014). 

Eduardo Prado Coelho escreve duas recensões a Sentido e Forma da Poesia Neo-Realista em 1968
Para ser inteiramente rigoroso, importa começar por registar que o artigo tem duas partes – mais tarde reunidas, expurgadas de gralhas e completadas em O Reino Flutuante. Exercícios sobre a razão e o discurso (Lisboa, Edições 70, 1973, pp. 149-161) –, nas quais Eduardo Prado Coelho dedica a sua atenção àquela «que é com certeza uma obra modelar para a crítica literária em Portugal» (Diário de Lisboa, 15/VIII/1968, p. 8). Não cabe aqui discutir tudo o que está em jogo no diálogo que se vai estabelecendo entre os dois Eduardos. Eduardo Prado Coelho, naquela que é sem dúvida uma das leituras mais pregnantes que até hoje se fizeram de Sentido e Forma, avança uma série de reservas conceptuais e metodológicas que exigem uma cuidadosa revisitação. Uma pista possível apenas: será que Poesia 61 (ou seja, poetas como Fiama Hasse Pais Brandão, Gastão Cruz, Luiza Neto Jorge, Maria Teresa Horta e Casimiro de Brito) se move fora do universo neo-realista? Eduardo Prado Coelho parece sugerir o contrário, dizendo que, para além das diferenças que saltam à vista, pode haver uma maior fidelidade estética onde se julga que ela não existe.
Eduardo Lourenço não levou a mal o tom crítico da recensão do Eduardo mais jovem. Pelo contrário. Nasceu aí uma enorme amizade ficou para sempre. Lendo uma carta que este escreverá no final do ano de 1968 em Lisboa, percebe-se que o autor criticado gostou de o ter sido e desse gosto fez saber também por carta ao seu crítico que, por seu turno, confessa: «Meu caro Eduardo Lourenço: Foi com grande alegria que recebi a sua carta» (Eduardo Prado Coelho, “Carta a Eduardo Lourenço”, Lisboa, 28/XII/1968, Colóquio-Letras, nº 171, Maio de 2009, pp. 403-406). A missiva de Eduardo Lourenço não está, tanto quanto se saiba, publicada, mas, a avaliar pela resposta, deverá ser fascinante e assim justifica a “grande alegria” de Eduardo Prado Coelho, na altura apenas com vinte e quatro anos, embora já com uma importante presença na cena literária lisboeta. Nessa carta (ela também com um valor documental extraordinário), o jovem crítico chama a atenção para o facto de os seus textos não terem sido integralmente publicados no jornal: 
«A minha crítica tinha dois cortes: a par de Carlos de Oliveira, […] e Lautréamont, havia o nome de Herberto Helder. Mas [o polémico livro] a Apresentação do Rosto tinha-o tornado temporariamente maldito, e a Censura eliminou-o. Na segunda parte, no 4º parágrafo, faltam vários períodos. Eu tentava encontrar a coexistência entre a sua definição de poesia e o projecto neo-realista, servindo-me das suas próprias frases; “canto de paraíso ausente”, etc. Também isso a Censura cortou» (Ibidem, p. 406). De facto, na versão do texto que aparece no livro O Reino Flutuante, quer o nome de Herberto Helder, quer o excerto eliminado pela censura (e que, em rigor, é uma citação directa do próprio texto de Eduardo Lourenço) já aparecem.  
Herberto Helder terá passado a ser autor maldito para a censura
 do Estado Novo depois do polémico Apresentação do rosto

José Marinho assina uma das duas recensões críticas
ao livro de Eduardo Lourenço na revista Colóquio
Por outro lado, Eduardo Prado Coelho anuncia um outro artigo sobre o livro Sentido e Forma, justificando-o através de motivos bastante prosaicos: «Fiz uma versão desta crítica para a revista Colóquio com intuito meramente económico. Com o texto de José Marinho, não sei que destino levará. Mas, como trabalho, é desprovido de interesse: puro resumo e desenvolvimento jornalístico das ideias centrais do texto do Diário de Lisboa» (Ibidem). O resto da carta explica os apertos financeiros do jovem crítico, na altura recém-casado e com «uma filha de 16 meses – que é a Alexandra» (Ibidem, p. 405). A verdade é que a Colóquio acabou por publicar duas recensões ao livro de Eduardo Lourenço. Assim, em Outubro aparece o texto de José Marinho que, por diversas razões, justificaria uma análise mais pormenorizada. Com a data de Dezembro, mas tendo chegado às bancas provavelmente um pouco mais tarde, o nº 51 da revista apresenta o segundo artigo de Eduardo Prado Coelho que, ao contrário do que este parece dizer, traz pelo menos um dado novo, a saber: «Preocupou-se Eduardo Lourenço, e em alto grau, com o pormenor, com a análise esmiuçada, com a leitura terra a terra, edição a edição, dos autores de que se decidiu ocupar. Lamentemos apenas que Mário Dionísio seja excluído do projecto, dado que o seu testemunho seria significativo» (Eduardo Prado Coelho, “Eduardo Lourenço Sentido e Forma da Poesia Neo-realista”, Colóquio, nº 51, Lisboa, Dezembro de 1968, p. 73).
Mário Dionísio: um dos ausentes de Sentido e Forma?
Ora, esse lamento é feito pelo próprio Eduardo Lourenço que, em nota de rodapé, afirma: «Lamentamos, por deficiência de documentação, não poder contrastar como se devia e requeria o caso destes três poetas com os de um Namora e sobretudo de Mário Dionísio e Manuel da Fonseca» (Sentido e Forma da Poesia Neo-realista, Lisboa, Ulisseia, 1968, p. 18). As atribulações da vida do novus pater familiae justificam decerto a não leitura desta confissão em pé de página. Um pormenor que não desmerece em nada a agudeza interpretativa do jovem crítico. Também por isso Ler Eduardo Lourenço não poderia estar mais de acordo com as muito recentes palavras de Delfim Sardo que admitiu: «Tenho umas saudades imensas de Eduardo Prado Coelho.» (http://www.publico.pt/portugal/noticia/o-intelectual-acabou-1670055).

domingo, 21 de setembro de 2014

Sólo en este último caso existe el poema, Dans ce dernier cas seulement le poème existe, Solo in quest’ultimo caso la poesia esiste, ...

Ler Eduardo Lourenço gosta de insistir na ideia seguinte: uma das melhores formas de tentar ser merecedor dos nossos grandes escritores é realizar um coerente e rigoroso programa de traduções e edições dos seus textos em outras línguas. Caso contrário, a divulgação das suas obras ficará irremediavelmente confinada aos leitores que conhecem português. Claro que, mesmo no amplíssimo universo da lusofonia, é possível e até exigível que a circulação dos autores portugueses seja realizada de modo mais efectivo e articulado – mas isso é conversa para outra ocasião. 
Eduardo Lourenço não é porventura dos ensaístas portugueses que terá maior razão de queixa quanto à tradução dos seus escritos para outras línguas. No entanto, essas traduções devem-se quase sempre aos esforços individuais de admiradores da sua obra, destacando-se entre eles o trabalho de sua Mulher, Annie Faria, falecida há cerca de um ano, pela tradução de quase todas as versões em francês dos ensaios do marido. Ainda assim, talvez continue a faltar uma verdadeira e sistemática política de tradução dos livros mais relevantes do autor de O Labirinto da Saudade. Se, por um lado, é digna de nota a (inesperada?) edição em sérvio de Razočarana Evropa: prilozi za jednu evropsku mitologiju, tarefa extremamente meritória levada a cabo por Anamarija Marinovič (Mediterran Publishing, 2011), por outro, é difícil de compreender que em inglês não haja, tanto quanto Ler Eduardo Lourenço possa afiançar, mais do que duas edições realizadas nos Estados Unidos: Chaos and Splendor and Other Essays (University of Massachusetts Dartmouth, 2002) e This little lusitanian house: essays on portuguese culture (Brown, 2003). 


Se se atentar, por exemplo, na repercussão que a obra de Fernando Pessoa tem no mundo anglófono, não deixa de ser surpreendente e lamentável que ainda não existam disponíveis em tradução inglesa frases tão memoráveis como estas: «De duas uma: ou essa leitura não o subtrai à tranquilidade morna da sua existência, inscrevendo-se apenas nela como uma “informação” suplementar, ressentida acaso como uma banalidade; ou essa leitura arranca o espírito da sua claridade habitual, entenebrece-o, destilando um pavor feliz na falsa infinitude da sua consciência sonâmbula. Só neste último caso o poema existe, abrindo em nós avenidas para nenhum jardim, inundando de luz nenhum espaço que possa ser nomeado mas de tal modo que claramente percebemos que devimos outro, quer dizer, o mesmo, mas como iluminado por dentro e sem fim. É a “joy for ever” de Keats, a existência do poema em nós e nós nele», Pessoa Revisitado – Leitura Estruturante do Drama em Gente, Porto, Editorial Inova, 1978, p. 16.
Relembre-se o contexto. Eduardo Lourenço acabara de citar dois poemas de Fernando Pessoa, respectivamente “Não meu, não meu é quanto escrevo” e o soneto “Súbita mão de algum fantasma oculto”, e partilha, com o leitor da sua obra Pessoa Revisitado, o testemunho da sua experiência face ao génio do poeta. 
Ora, deste excerto do capítulo “Considerações pouco ou nada intempestivas”, são já felizmente  conhecidas versões em espanhol (por Ana Márquez), em francês (por Annie de Faria) e até em italiano (por Daniela Stegagno que, assinale-se, é a autora da primeira tese de doutoramento dedicada à obra do ensaísta). Em homenagem ao trabalho silencioso e imprescindível dos tradutores (neste caso, das tradutoras), Ler Eduardo Lourenço recupera o modo como estas luminosas palavras de Pessoa Revisitado parecem ganhar novo fôlego noutras línguas, alargando assim o raio de influência do pensamento do ensaísta: 

Foto Ler Eduardo Lourenço

 I

«Una de dos: o bien esta lectura no impide al lector proseguir tranquilamente su cómoda existencia, incorporando aquélla solamente como una “información” complementaria, sentida al fondo como una banalidade; o bien esa lectura despoja al espíritu de su claridad habitual, entenebreciéndolo, destilando un pavor feliz en el falso infinito de su conciencia sonámbula. Sólo en este último caso existe el poema, abriendo dentro de nosotros avenidas que no conducen a ningún jardín, inundando de luz ningún espacio que podamos nombrar, pero haciéndolo de tal manera que advertimos claramente que nos hemos transformado en otro, es decir, el mismo, pero infinito y como iluminado por dentro. Es la “joy for ever” de Keats, la existencia del poema en nosotros y de nosotros en él», Pessoa Revisitado – Lectura estructurante del “drama en gente”, Valencia, Pre-textos, 2006, traducción de Ana Márquez, p. 13. 

II
«De deux choses l’une: ou cette lecture nous soustrait à la tiède tranquillité de notre existence, s’inscrivant seulement en elle comme “information” supplémentaire, ressentie peut-être comme une banalité; ou cette lecture arrache notre esprit à son clarté habituelle, l’obscurcit, distillant un effroi heureux dans la fausse infinitude de sa conscience de somnambule. Dans ce dernier cas seulement, le poème existe, ouvrant en nous des avenues qui ne mènent à aucun jardin, inondant de lumière un espace qui n’a pas de nom, mais de telle manière que nous sentons clairement que nous devenons autre, c'est-à-dire, la même, mais comme éclairé au-dedans et à jamais. C'est la joy for ever de Keats, l'existence du poème en nous, et de nous en lui», Pessoa l’étranger absolu – Essai, Paris, éditions Métaillé, 1990, traduit du portugais par Annie de Faria, p. 9. 

III
«Una delle due: o questa lettura non sottrae lo spirito alla tiepida tranquillità della sua esistenza e vi si iscrive solo come una “informazione” supplementare, considerata quasi una banalità; oppure lo strappa dalla sua chiarezza abituale e lo offusca, infondendo un felice timore nella falsa infinitezza della sua coscienza sonnambula. Solo in quest’ultimo caso la poesia esiste, apre in noi viali per nessun giardino, inonda di luce nessuno spazio che possa essere nominato, ma in modo che noi percepiamo chiaramente che devimos altro, vale a dire, lo stesso, ma in modo tale che percepiamo chiaramente che divientiamo altro, ossia, lo stesso, ma come illuminato dall’interno e senza fine . È la “joy for ever” di Keats, l'esistenza della poesia in noi e di noi in essa», Fernando Re Della Nostra Baviera – Dieci saggi su Fernando Pessoa, Roma, edizione Empirìa, 1997, a cura di Daniela Stegagno, p. 13. 


Registe-se para terminar que, no caso da edição francesa de Pessoa Revisitado, houve apenas uma alteração no título, ao contrário da versão espanhola que traduziu literalmente o nome do livro que, curiosamente, também sofrera ligeiras alterações nas várias edições portuguesas. Já Daniela Stegagno decidiu traduzir o capítulo “Considerazioni poco o affatto intempestive”, juntamente com quatro ensaios anteriormente aparecidos em Poesia e Metafísica (“Fernando Pessoa o lo straniero assoluto”, “Pessoa o la realtà como finzione”, “Considerazioni sul Proto-Pessoa” e “L’infinito Pessoa”) para incluir no seu Fernando Re Della Nostra Baviera que contém apenas cinco capítulos da edição portuguesa com o título homónimo.

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Pela Rua Ferreira Borges abaixo e acima


Jorge de Sena
Num extraordinário poema, escrito a catorze de Dezembro de 1971 e publicado pela primeira vez  no livro póstumo Visão Perpétua, Jorge de Sena escreve a dado passo:

(…) E sou clássico, barroco, romântico, 
discursivo, surrealista, anti-surrealista, 
obnóxio, católico, comunista, 
conforme as raivas de cada um. (…)

 Cumpre dizer, sobretudo num autor que sempre visou demarcar-se de qualquer poética confessional, que estes versos desaconselham, como é óbvio, qualquer leitura literal. Todo o poema, conhecido pelo primeiro verso “Quando há trinta anos…”, pode ser interpretado como um exercício, do qual não está ausente a (auto-)ironia e que radica numa estratégia literária análoga ao método da teologia negativa. Por outras palavras, tudo o que Jorge de Sena diz que os outros («aquela tropa») dizem a seu respeito «não deu resultado». Isto é, a sucessão infinita de definições que os outros dele fazem acaba por demonstrar a sua indefinibilidade. Deste modo, quando Sena afirma que é comunista, tal só pode significar precisamente o oposto. Aliás, isso mesmo deriva do facto de essa e todas as outras afirmações citadas dependerem sempre das “raivas de cada um”.

Em nenhuma circunstância, o poema “Quando há trinta anos…” parece referir-se explicitamente à revista Cadernos de Poesia a que, como se sabe, Jorge de Sena esteve intimamente ligado. Mesmo que seja arriscado interpretar silêncios, essa ausência merece ser assinalada. Como referem Luís Adriano Carlos e Joana Matos Frias, o peculiar “grupo” dos Cadernos de Poesia «procurou integrar a consciência modernista da linguagem, menosprezada pelo Neo-Realismo, numa consciência ética da poesia que os poetas de Orpheu jamais assumiram» (“Introdução. A poesia é só uma ou as palavras contra o tempo”, Cadernos de Poesia. Reprodução fac-similada, Porto, Campo das Letras, 2004, p. X). Ainda que alguns estudantes mais distraídos asseverem o contrário (e Ler Eduardo Lourenço conhece pelo menos um caso desses), é possível concluir, com razoável segurança, que a poesia de Jorge de Sena nunca foi neo-realista. De resto, o crítico Jorge de Sena também se distancia, sem tergiversações, da estética da revista Vértice. Num texto escrito na mesma época de “Quando há trinta anos…”, esses anos duplamente iniciais são revisitados do seguinte modo: «Entre 1938 e 1944, estrearam-se em volume os jovens poetas que se arregimentavam no chamado “neo-realismo” (muito formalmente devedores a Álvaro de Campos no verso livre, ou a Torga, nos metros tradicionais), e os que constituíram os Cadernos de Poesia, mais cientes do que os grupos anteriores e seus contemporâneos quanto ao que se passara e passava na poesia ocidental» (Estudos de Literatura Portuguesa – III, Lisboa, Edições 70, 1988, p. 120). E Jorge de Sena vai até mais longe, falando em «incipiência agressiva», em «intenções políticas fazendo as vezes de vivência poética» e até em poemas «mais políticos e circunstanciais» enquanto características da poesia neo-realista que, ainda assim, apresenta várias excepções a esta regra (Carlos de Oliveira e Manuel da Fonseca, em especial). Outras passagens poderiam ser aqui mencionadas, mas esta introdução já vai extensa. 


Rua Ferreira Borges (Coimbra): a foto retrata uma manifestação de estudantes em 1969
 Em 1968, ou seja três anos antes dos textos de Sena que temos vindo a citar, Eduardo Lourenço envia ao Amigo um exemplar do seu novo livro Sentido e Forma da Poesia Neo-Realista (Ulisseia), esperando naturalmente que o poeta e crítico se pronunciasse acerca da exegese que aí é feita da poesia de João José Cochofel, Joaquim Namorado e Carlos de Oliveira. Da reacção de Jorge Sena a Sentido e Forma temos ecos em duas cartas enviadas a Eduardo Lourenço. Assim, em post-scriptum à missiva com a data de Roma a 29 de Novembro de 1968, pode ler-se: «Sei que o seu livro me chegou ao Wisconsin [onde Sena lecionou na Universidade entre 1965 e 1970). E folheei-o em casa do [poeta José] Terra, em Paris» (Eduardo Lourenço/Jorge de Sena. Correspondência, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1991, p. 73). Em 18 de Junho do ano seguinte, e já de novo em Madison, pois a sua longa viagem pela Europa terminara com a vinda a Portugal na época do Natal, Jorge de Sena escreve ao Amigo sobre o livro deste. «O seu livro sobre os neo-realistas chegou-me já não me lembro onde nem como. A dizer a verdade que eu penso, acho uma despesa de generosa inteligência e brilhante prosa como é a sua, com gente que estimável não merecia tanto. Mas compreendo perfeitamente que V. sentisse necessidade dele – não é impunemente que a gente pode crescer juntos pela Rua Ferreira Borges abaixo e acima. Eu tenho andado mergulhado na leitura deles e dos mais outros, para a reedição revista e actualizada das minhas Líricas Portuguesas, que também estou a preparar. E por certo que alguns deles são dos mais interessantes, embora a poesia de quase todos, sem a garantia “partidária”, não possa ser tida como “poesia social”. Nem socialmente eles o são: todos membros da grande burguesia ou da pequena aristocracia provincial, e vivendo dos rendimentos às vezes pingues. Mas em Portugal as pessoas nunca foram julgadas pelo que realmente fazem, mas pelo que se assume que são» (Ibidem, p. 78). 
Reprodução da primeira página de um texto inédito de Eduardo Lourenço sobre a sua participação no movimento do neo-realismo coimbrão nos anos Quarenta do século passado (imagem retirada do II volume das Obras Completas)


Estas palavras de Jorge de Sena têm qualquer coisa de ambíguo. Se, por um lado, há alguma condescendência com o projecto do Amigo que teria escrito o livro por uma espécie de solidariedade geracional – e, em rigor, Eduardo Lourenço nunca virá a opor-se a que se leia assim esta obra – por outro, Sena não deixa de aludir a mais duas coisas. A primeira delas tem a ver com o facto de alguns dos poetas neo-realistas serem “dos mais interessantes” daquele período que, bem vistas as coisas, é também o seu. A segunda prende-se com o facto, sociologicamente indesmentível, de esses poetas “serem todos membros da grande burguesia ou da pequena aristocracia provincial” e, por isso…  
Ler Eduardo Lourenço ousa desconfiar que Sentido e Forma da Poesia Neo-Realista, conjunto de ensaios de um autor que, recorde-se, também colaborou em Cadernos de Poesia com um surpreendente texto sobre Pascoaes (“Tinham-me dito que ele viria...”, Cadernos de Poesia, 3ª série, nº 14, p. 14 e 29-30), tenha ajudado Sena a refrear alguma da sua proverbial impiedade contra a poesia e os poetas neo-realistas*. 
Eis aqui mais um óptimo pretexto para regressar a esse livro que, muito brevemente, chegará às livrarias integrado no II Volume das Obras Completas de Eduardo Lourenço, uma edição da Fundação Calouste Gulbenkian que reúne ainda um conjunto significativo de textos do ensaísta do e sobre o seu tempo de Coimbra.


* Sobre este assunto, cf. o magnífco estudo de Gilda Santos “À volta do Neorrealismo português, segundo Jorge de Sena”, disponível em http://www.lerjorgedesena.letras.ufrj.br/ressonancias/pesquisa/ufrj/edit-a-volta-do-neorrealismo-portugues-segundo-jorge-de-sena/.