segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Dentro e fora do Neo-Realismo

António Pedro Pita, Eduardo Lourenço e Manuel Carmelo Rosa (foto Ler Eduardo Lourenço)
«Quando cheguei à Faculdade de Letras em Coimbra, a minha formação literária era muito escassa, para não dizer nula. Como frequentara o Colégio Militar, tinha estudado sobretudo matérias das áreas científicas, pelo que poucos conhecimentos tinha daquilo a que se costuma chamar humanidades. Certo dia, levando um livro na mão quando entrava na Faculdade, fui interpelado por um colega nestes termos: 
- Ó pá, o que é que andas a ler? 
Mostrei-lhe o exemplar de Notre-Dame de Paris que andava a ler e disse: 
- É um romance… 
- Do Victor Hugo? Mas o Victor Hugo não é um verdadeiro romancista! 
Perguntei, algo supreso: 
- Então quem é um verdadeiro romancista? 
- Um verdadeiro romancista é o Eça de Queiroz, pá! 
 Assim que pude fui procurar livros deste verdadeiro romancista e lembro-me de ter lido logo O Crime do Padre Amaro. Ou não, o primeiro que li foi mesmo O Primo Basílio que ainda era “pior”…» 

Será Victor Hugo um verdadeiro romancista?
Foi mais ou menos assim (a citação é feita de cor...) que Eduardo Lourenço que, no seu deliciosamente inconfundível modo de contar estórias, se referiu à importância que teve para a sua formação literária e cultural o convívio com amigos como Carlos de Oliveira e outros nomes do chamado neo-realismo. Fê-lo durante uma sessão de apresentação (realizada ao fim da tarde da passada quinta-feira na Gulbenkian, em Lisboa) do II Volume das Obras Completas, precisamente intitulado O Sentido e a Forma da Poesia Neo-Realista e Outros Ensaios
A sessão, coordenada por Manuel Carmelo Rosa (responsável pelo Serviço de Edições da Gulbenkian), começara com uma esplêndida intervenção de António Pedro Pita, prefaciador deste volume, que mostrou, pormenorizadamente, de que forma Eduardo Lourenço esteve ao mesmo tempo fora e dentro do neo-realismo. Nesse contexto, lembrou como o livro Sentido e Forma da Poesia Neo-Realista, que, apesar de escrito no início dessa década acabou por ser publicado apenas em 1968, ganha muito se for lido em diálogo com duas outras obras: Há uma estética neo-realista? de Mário Sacramento (saída nesse mesmo ano) e A Poesia da Presença e o Aparecimento do Neo-Realismo de Fernando Guimarães (editado no ano seguinte).

Mário Sacramento
Fernando Guimarães
 Se o estudo de Mário Sacramento é escrito a partir do interior do neo-realismo e o de Fernando Guimarães pode ser considerado um olhar a partir de fora, ambos os livros, tal como Sentido e Forma da Poesia Neo-Realista, devem, segundo António Pedro Pita, ser interpretados como ensaios que, pela primeira vez, tomam o neo-realismo como objecto literário. O caso do livro de Eduardo Lourenço é ainda especial, porque foi escrito por alguém que, embora tenha convivido de perto com os membros do grupo do Novo Cancioneiro (chegou, por exemplo, a vender livros de poesia desta colecção, como acabou por confessar na sua intervenção), em rigor nunca partilhou o mesmo horizonte teórico dos seus camaradas. Mesmo que tenha sido com eles (e por causa deles) que se tenha iniciado nos fascinantes caminhos da literatura moderna, começando a ler verdadeiros romancistas
A intervenção de Eduardo Lourenço foi um claro desmentido da sua primeira frase na qual confessou: «Depois das magníficas apresentações que ouvi, esta de António Pedro Pita e aquela que a poetisa Rosa Maria Martelo fez na sessão de lançamento deste livro em Coimbra, nada mais tenho a dizer...». Mas a verdade é que tinha. E como sempre os privilegiados que estavam na sala souberam apreciar mais um momento singular e inesquecível.