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Annie Salomon de Faria nos anos 60 (imagem publicada em Eduardo Lourenço et la Passion de l'Humain) |
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Nunca me imaginei na situação de quem recebe uma homenagem. Uma situação nada confortável para uma pessoa que recebeu, como eu, uma educação que sempre exaltava mais a modéstia do que o aparecer. Mas anima-me a convicção de que este acto que me honra é devido à estima sincera de pessoas amigas que teimam em ver-me como uma mulher auxiliar em “primeira fila” na realização da obra de Eduardo Lourenço. Auxiliar, eu fui, em certa medida, mas não me atreverei a julgar a importância efectiva do meu auxílio... Recebi uma formação universitária de hispanista, e tudo levava a pensar que a minha carreira se dedicasse ao mundo hispânico. Previsão demasiado lógica que ignorava o papel do destino que levou um jovem português a cruzar o meu caminho na Universidade de Bordéus.
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Annie e Eduardo Lourenço em Bordéus no ano de 1949 (imagem publicada em Tempos de Eduardo Lourenço-Fotobiografia) | | |
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Ele era filósofo e falava mal francês. Mas este
handicap não o
impedia de intervir com veemência nos debates de vários círculos
culturais da cidade. Ele era fascinante. A tal ponto que um dia
atrevi-me a dizer-lhe: «Vous êtes un bavard sympathique». Uma frase
fatal que selou o meu destino. Casei com Eduardo Lourenço em 1954. Desde
o início soube que não escolhera a facilidade. Mas quem tinha, como eu,
vivido desde a infância numa terra onde chuva, ventos e fúrias do
oceano batiam no granito, ao ritmo das marés, tinha – dizia – que ter
uma alma aventureira. Gostava dos desafios e sonhava poder ultrapassar o
horizonte
ad infinitum. A minha bifurcação cultural não me
assustou. É certo que eu não tinha escolhido «un lecho de rosas», como
se diz no México. Mas a minha firmeza, ou dizendo melhor, a minha
teimosia, soube resistir, contra ventos e marés, no correr da minha
vida. À medida que eu ia descobrindo a cultura portuguesa e, mais tarde,
o mundo brasileiro, estabeleceu-se entre nós os dois – Eduardo e eu –
uma troca contínua de impressões, opiniões, comparações, etc., sobre
tantos assuntos, temas, livros. Chegou a ser mesmo um verdadeiro «
partage», em momentos privilegiados de cumplicidade e identidade. Sentia isso particularmente quando traduzia os seus livros. «
Partage»
que a chegada do nosso filho Gil, hoje aqui presente, veio confortar
afectivamente. E neste momento de celebração festiva, penso com ternura
na nossa nora Laurence e nos nossos netos Morgane e Robin, que não nos
puderam acompanhar. Também em nome deles quero agradecer a todos os que
me quiseram honrar com o testemunho do próprio afecto e amizade neste
dia da inauguração da Biblioteca Eduardo Lourenço. Muito obrigado,
pois.
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Fotografia publicada em Jornal de Letras, Artes e Ideias |
*Annie Salomon nasceu Côte du Nord, na Bretanha, a 11 de Agosto de 1928. Licenciou-se em Línguas Hispânicas na Universidade de Bordéus, cidade onde conheceu Eduardo Lourenço, com quem se viria a casar em 1954. Dez anos volvidos foi convidada a leccionar na Universidade de Nice, tendo o casal passado mais tarde a viver em Vence. Hospitalizada há algumas semanas, Annie Salomon de Faria morreu ontem em Lisboa. O texto de sua autoria que acima se reproduz foi lido em 25 de Novembro de 2008 durante a cerimónia de inauguração da Biblioteca Municipal Eduardo Lourenço (e na qual Annie foi também homenageada) na Guarda, tendo sido publicado no Jornal de Letras na página 42 da edição de 17 de Dezembro desse mesmo ano.