quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Mário Botas ou os sonhos de um estrangeiro na própria casa

Como se sabe, há afirmações que podem ter mais do que uma leitura. Quando se diz que Eduardo Prado Coelho é um dos primeiros leitores de Eduardo Lourenço, a frase pode pelo menos querer significar duas teses. Pode traduzir um juízo factual ou objectivo: Eduardo Prado Coelho é uma das pessoas que mais cedo começou a ler o autor de O Espelho Imaginário  e dessas leituras deu quase imediato testemunho nítido através das recensões críticas dedicadas a livros como Sentido e Forma da Poesia Neo-realista ou Heterodoxia II e publicadas logo nos finais dos anos Sessenta. Mas a frase pode também expressar um juízo valorativo, se visar conferir à expressão um dos primeiros o sentido seguinte: um dos principais, mais importantes ou até melhores leitores de Eduardo Lourenço. Neste segundo caso, a tese é evidentemente discutível, embora haja fortes motivos para a tomarmos como válida.
Ora, num dos muitos textos que dedica à especificidade do ensaísmo de Eduardo Lourenço, Eduardo Prado Coelho fala no que chama um princípio de amizade, que, do seu ponto de vista, caracteriza a escrita do autor de Pessoa Revisitado. E explica melhor o que significa esse princípio:  «não pretendo dizer que ele elogia os seus amigos (o que certa­mente lhe acontece, e ainda bem), mas precisamente outra coisa: que ele se aproxima sempre de uma obra literária, seja ela de quem for, como se a amizade fosse a forma privilegiada do conhecimento». Talvez não haja exemplo tão claro da ilustração desse princípio de amizade praticado por Eduardo Lourenço como quando escreve sobre o pintor Mário Botas (Nazaré, 1952 – Lisboa, 1983). A leitura do extraordinário ensaio “Mário Botas ou a pintura como poesia”, inserido na segunda edição de O Espelho Imaginário, bastará decerto para confirmar esta hipótese. Por exemplo, é aí que encontramos a fabulosa expressão que serve de título a estas linhas:  os sonhos de um estrangeiro na própria casa. Nela ecoa a inapagável marca pessoana, referência decisiva quer em Eduardo Lourenço, quer em Mário Botas.

A capa de Fernando Rei da Nossa Baviera foi feita a partir de uma pintura de Mário Botas, a quem é dedicado o ensaio que abre o livro e que tem o mesmo título. A paixão pela obra de Fernando Pessoa é um dos elementos que desde sempre aproximou Eduardo Lourenço e Mário Botas.
De Mário Botas, figura injustamente caída num certo esquecimento, acaba de chegar às  livrarias (embora com a data de 2012), numa corajosa edição da Averno, o volume  Aventuras de um crâneo e outros textos. Trata-se de um excelente documento não apenas pela sua beleza gráfica, como pelo valioso conjunto de textos e informações sobre a vida e a obra de Mário Botas, trágica e prematuramente interrompidas com a sua morte. Nesse conjunto de escritos destacam-se três cartas dirigidas a Eduardo Lourenço e que se encontram no espólio do ensaísta. Duas delas, datadas de 18 de Setembro de 1979 e de 4 de Outubro de 1979, tinham sido já publicadas em Colóquio-Letras (nº 171, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, Maio de 2009, pp. 415-418), mas a terceira que, neste caso, se trata em rigor da primeira (foi escrita com a data de 1 de Maio de 1977) permanecera até agora inédita. É uma carta belíssima e mostra como a amizade entre Eduardo Lourenço e Mário Botas não se pode dissociar da recíproca admiração das respectivas obras. Mas Aventuras de um crâneo tem muitos outros motivos de interesse e por isso a sua leitura afigura-se imprescindível.
 

Mário Botas fotografando Eduardo Lourenço em Vence (imagem retirada de Tempos de Eduardo Lourenço. Fotobiografia, Campo das Letras, 2003)
Ler Eduardo Lourenço teve o privilégio de ser recebido pelo ensaísta há algumas semanas em Vence. Foi uma tarde inesquecível na qual, uma vez mais, Eduardo Lourenço deu provas da sua generosidade e simpatia infatigáveis. Assim, para além da visita à famosa Chapelle du Rosaire, uma criação esplendorosa de Henri Matisse, e da ida a uma impressionante exposição de Marc Chagall no Museu de Vence (e que prazer insubstituível é ouvir os comentários de Eduardo Lourenço que, sempre em passo apressado, percorreu as várias salas do museu), houve lugar a uma emocionada evocação de … Mário Botas, pintor que, tal como Matisse e Chagall, também passou por esta cité des artistes. À passagem pela célebre fonte que recebe quem se prepara para entrar na zona amuralhada de Vence, Eduardo Lourenço exclamou: «O meu Amigo Mário Botas tirou-me uma vez uma fotografia junto a esta fonte!» 
E, assim, de uma certa forma, se revisitou a hospitalidade de alguém que, muitas vezes, também se parece sentir um estrangeiro na sua própria casa.
Eduardo Lourenço em foto de Mário Botas (imagem retirada de Tempos de Eduardo Lourenço. Fotobiografia, Campo das Letras, 2003)
Eduardo Lourenço em Vence no passado dia 29 de Agosto. Foto de Ler Eduardo Lourenço