quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Manuel da Fonseca ou o retrato de um Alentejo que já não é

2011 é ano de duplo centenário neo-realista. De facto, comemora-se agora os cem anos de nascimento de Alves Redol e de Manuel da Fonseca. Revistas e jornais dedicam algumas das suas páginas à efeméride, ao mesmo tempo que se realizam colóquios e jornadas de homenagem. Assim, não foi surpresa tropeçar hoje num depoimento de Eduardo Lourenço acerca dos chamados escritores neo-realistas, recolhido por Joana Palminha e publicado na edição acabada de sair da revista Os Meus Livros* , onde o ensaísta, para além de lamentar a desatenção que hoje existe acerca de muitos desses escritores de quem foi amigo muito próximo, evoca o ambiente português que era retratado nos seus livros. As duas primeiras fotografias que ilustram as palavras do ensaísta são da autoria de Jean Dieuzaide (1941-2003), fotógrafo francês que, em 1998, publicou o álbum Portugal 1950, onde pode ler-se um ensaio de Eduardo Lourenço com o título Luz e Memória. A este álbum e a este ensaio, voltará em breve Ler Eduardo Lourenço.


(foto de Jean Dieuzaide)


Manuel Fonseca trouxe o Alentejo profundo para a literatura, criando uma espécie de mitologia alentejana com poemas muito positivos que mostram a coragem e o silêncio marcantes dos alentejanos.

Mercado de Évora, 1954 (foto de Jean Dieuzaide)

As imagens diluem-se com com o passar do tempo e naqueles livros [neo-realistas] está o retrato de um Portugal que já não é.


foto retirada de feldecao.blogspot.com

 O Carlos [de Oliveira] já me tinha falado nele [Manuel da Fonseca, na foto], como uma pessoa muito calorosa, muito dada... sem pretensiosismo intelectual.  Quando o encontrei pela primeira vez, numa Feira do Livro em Lisboa, falámos um pouco sobre aquela mitologia alentejana que ele criou nos livros. O Carlos tinha razão.







* Joana Palminha, O neo-realismo ainda conta?, Os Meus Livros, nº 103, Lisboa, Outubro de 2011, pp. 42-47.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Um país com nome novo*

De todas as peripécias da nossa tardia e interminável “descolonização”, a de Timor não foi, e esperemos que o não seja agora, a mais lamentável e sangrenta. Mas foi, e não acabou de ser, a mais absurda e opaca. Absurda, precisamente porque nada havia nela que justificasse uma tal opacidade. Nem contencioso tipicamente colonialista nem ressentimentos, nem má consciência, salvo a de um abandono aflitivo do que mal tínhamos por nosso, impediam que tratássemos da questão de Timor – por nós criada com a atenção que merecia um povo que durante séculos estava à nossa guarda. Sobretudo com o máximo de distância em relação aos nos­sos mitos ou aos nossos interesses de antiga potência colonial. Provavelmente, sem a invasão, a “questão de Timor” teria sido re­solvida na única perspectiva que o caso requeria e a nós nos devia importar, a do povo timorense, se o povo timorense fosse aquele fictício interlocutor sem problemas que nos foi apresentado por quem tinha interesse nisso. Mas não era. E menos o ficou quando a Indonésia, contra todos os princípios de direito internacional, não só invadiu Timor como o converteu em território seu. Os dados da tragédia, até então circunscrita e interna, mudaram de sentido.
Síntese de um drama: A maioria do povo timorense tornou-se re­sistente, de facto ou de intenção, sem ter meios, nem militares nem político-diplomáticos, para se opor a tão odiosa ocupação. Só Portugal, ainda sujeito da legitimidade em Timor podia denunciar a vexação e levar para o palco internacional um conflito obscuro co­meçado num contexto não menos obscuro. Foi o que fez durante mais de 20 anos com postura diversa, ao fim dos quais é arrancada à Indonésia a promessa de um referendo de onde saiu (em princí­pio) um novo país ou um país com nome novo: Timor Lorosae. Este baptismo é uma espécie de síntese de um drama intermiten­te, ponteado por lágrimas e sangue em Timor, e vivido em Portugal na maior das opacidades sob a forma de um conflito “imaginário” entre nós e a Indonésia. Enquanto drama timorense, apesar desse sangue e lágrimas, a questão de Timor ficou subordinada ao braço de ferro diplomático entre uma grande potência regional actuan­do sem escrúpulos, e a antiga pequena potência tutelar duas ve­zes impotente mas decidida a fazer de Timor o último ponto de honra de uma aventura histórica em fim de percurso. E de tudo is­to, durante 20 anos, o povo timorense foi ao mesmo tempo a víti­ma, o herói e, por vezes, o álibi. Sem o drama timorense teve-se, ao longo destes anos todos, a impressão de que não teríamos uma política e uma presença internacionais dignas desse nome.
Passional e patética: É possível que uma vez consumado o nos­so “abandono” de Timor, as coisas não se pudessem passar de uma maneira muito diversa do que se estão passando. Mas o que não é aceitável é que toda esta dolorosa peripécia histórico-diplomática, de que o destino do povo de Timor é o centro aparen­te, se não tenha desenrolado com um mínimo de transparência, de informação, de discussão permanente acerca do que está em jogo. Era o nosso caso com a Indonésia, potência agressora, e bastava. Nenhum livro branco (ou negro), nenhuma discussão à altura da tragédia, nenhuma informação da complexidade e até da simples realidade de Timor, salvo a passional e patética que podia ser explorada para os sempiternos fins de interesse político nosso, o mais imediato possível.
Em plena vigência democrática, nem a curiosidade nem a paixão pelas nossas coisas e nosso destino foram mais satisfeitas em relação a Timor do que foram no tempo de Salazar as que diziam respeito a Goa ou ao resto do império que se devia defender sem nos dizer como e para quê. Era, pelos vistos, uma questão diplo­mática. E diplomática será até ao fim. Que fim? Façamos votos e mesmo no tarde, um pouco mais do que isso para que não seja o fim dos timorenses.


*Na próxima quarta-feira, dia 28 de Setembro, pelas 10h30, na Sala dos Capelos, e por designação da Faculdade de Letras, a Universidade de Coimbra vai distinguir com o título de Doutor honoris causa Xanana Gusmão, antigo Presidente da República e actual Primeiro-Ministro de Timor Leste. A cerimónia que terá como apresentante o ensaísta Eduardo Lourenço e o elogio do professor José Augusto Bernardes. Ler Eduardo Lourenço assinala o acontecimento, recuperando um texto que o ensaísta publicou , poucos dias após a realização do referendo que conduziu à independência de Timor Leste, com o título Um país com nome novo (Visão, Lisboa, 9/IX/1999, p. 66).

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

As Torres do Desassossego

Lawrence Wright

É sempre um acontecimento a publicação de um ensaio de Eduardo Lourenço nas páginas da imprensa portuguesa, sobretudo numa época em que a sua lúcida presença parece cada vez mais rara e urgente. O artigo escrito no passado dia 12 e que surgiu apenas no Público de ontem (a que se deveu esse estranho atraso?) justifica, por isso, uma menção em Ler Eduardo Lourenço. O tema é, como não podia deixar de ser, se atendermos à data da redacção e ao título do texto, o atentado de 11 de Setembro de 2011, suas causas e implicações. Segundo Eduardo Lourenço «tudo o que é necessário para compreender a saga pseudo-redentora e maldita que culminou no ataque às torres de Nova Iorque e fechou provisoriamente com a morte sem julgamento de Bin Laden, tem a sua bíblia portátil no livro de Lawrence Wright A Torre do Desassossego (edição portuguesa Casa das Letras)».
O ensaio de Eduardo Lourenço vale a pena ser lido na íntegra (http://jornal.publico.pt/noticia/20-09-2011/o-fantasma-de-bin-laden-ou-o-eixo-do-bem-23006649.htm) e, sobretudo, importava ser discutido na opinião pública portuguesa. No entanto, a sua publicação diferida em mais de uma semana (e uma semana na agenda mediática soa cada vez mais como uma eternidade...) não ajuda certamente a promover essa discussão. Ler Eduardo Lourenço lamenta esse facto e, ao mesmo tempo, remete os seus visitantes também para a leitura do livro de Lawrence Wright (editado entre nós há quatro anos!), apresentando uma palestra efectuada na Princeton University em Abril de 2007 pelo autor que, recorde-se, venceu o famoso Prémio Pullitzer desse ano com o seu The Looming Tower.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Capa

Como Ler Eduardo Lourenço sugeriu anteriormente, Outubro é um tempo importante para os amigos do pensamento do ensaísta. De facto, será durante esse mês que ocorrerá a vinda a público do primeiro volume, com o título Heterodoxias, das Obras Completas do ensaísta, numa edição da Fundação Calouste Gulbenkian. Por agora, Ler Eduardo Lourenço oferece apenas aos seus visitantes uma imagem do esboço da capa deste novo livro que, para além do conteúdo dos dois volumes já conhecidos de Heterodoxia (publicados respectivamente em 1949 e 1967), apresenta, entre outras novidades, um capítulo a que Eduardo Lourenço deu o nome de Heterodoxia III. Importa, por isso, estar atento a este blog, porque outros pormenores desta edição irão sendo em breve avançados.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Outubro

Eduardo Lourenço e Guilherme d'Oliveira Martins (um dos participantes em Eduardo Lourenço et la passion de l’humain)
 
Num ano também marcado pela homenagem que São Pedro do Rio Seco lhe prestou no passado dia 6 de Agosto, Eduardo Lourenço vai ter em Outubro mais um mês particularmente preenchido. Assim, nos dias 20 e 21, realizar-se-á em Paris, o colóquio Eduardo Lourenço et la passion de l’humain, evento organizado por Maria Graciete Besse (do Centre de Recherches Interdisciplinaires sur les Mondes Ibériques Contemporains Universidade Paris IV-Sorbonne) e a Delegação de Paris da Fundação Calouste Gulbenkian. Participam no encontro Cleonice Berardinelli, Helena Buescu, António Vitorino, Miguel Real, Roberto Vecchi,  José Eduardo Franco, Vasco Graça Moura, Guilherme Oliveira Martins, Rui Ramos, Onésimo Teotónio de Almeida, Maria Manuel Baptista, Claude Rouquet, Angel Marcos de Dios, Robert Bréchon  e Carlos Mendes de Sousa,  no que constitui, de acordo com a organização, uma reunião que pretende «homenagear o intelectual marcado antes de mais pela paixão do humano».
Mas o mês de Outubro será ainda tempo para outro acontecimento bem relevante e do qual Ler Eduardo Lourenço dará em breve todas as informações.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Lobo Antunes, o navegador da realidade submersa



«Se as gerações futuras quiserem saber que país era este, que país é este,
é nos livros de António Lobo Antunes que elas vão lê-lo».



De 15 a 17 de Setembro o Teatro Municipal São Luiz em colaboração com as Publicações Dom Quixote dedica a sua programação a António Lobo Antunes. Sábado 17, às 18h30, Eduardo Lourenço estará presente para uma mesa-redonda com João Lobo Antunes (médico, ensaísta e irmão do escritor), numa conversa moderada por Maria Alzira Seixo*.
Não é a primeira vez que os dois escritores se cruzam. Por exemplo, em 2002, a Universidade de Évora promoveu o Colóquio Internacional António Lobo Antunes, onde se encontraram numa mesa redonda, moderada pelo então Reitor Manuel Ferreira Patrício. Nessa ocasião, Eduardo Lourenço refere-se já a um encontro anterior «uma espécie de sessão estranha, mano a mano, num bairro da cidade de Bordéus» do qual indica que «seria óptimo para nós dois, sobretu­do para mim, que pudéssemos aqui 'repetir' esse encontro, que foi um con­vívio divertido, dialogante, de mútua surpresa para ambos».


Foto do encontro na Universidade de Évora, onde se pode ver, da esquerda para a direita:
Eduardo Lourenço, António Lobo Antunes e Manuel Ferreira Patrício (Diário do Sul, 19/XI/2002)

É desse encontro, que ficou guardado em livro editado pela Dom Quixote sob o título A Escrita e o Mundo em António Lobo Antunes, que agora Ler Eduardo Lourenço transcreve alguns excertos nos quais se poderá também reencontrar algumas questões matriciais para o pensamento de Eduardo Lourenço: tempo, identidade, a necessidade do confronto com a imagem que fomos construindo de nós próprios enquanto país,  que se foi desintegrando com o cair da máscara do colonialismo, como condição para a nossa reinvenção...
«Estamos já no cerne da obra de Lobo Antunes, dominada vivência muito profunda de que nós somos (nós, Homens, a Humanidade) fundamental­mente tempo, fundamentalmente temporalidade, não só no sentido clássico e ter a atitude de qualquer coisa que flui, que modifica realmente as coisas, mas que é ele próprio, uma espécie de monstro que a si mesmo se devora e transforma. Tudo quanto no espelho desse tempo podemos olhar, mesmo se voltamos apenas o imaginário rosto para trás, já não é o mesmo que nós estávamos sendo há pouco tempo».
«Antó­nio Lobo Antunes vai, pouco a pouco, fazer emergir um continente, uma rea­lidade que é ao mesmo tempo nossa e uma realidade universal, a partir de uma visão carnal, concreta, que tem o seu apoio no presente e no tempo presente. A sua imaginação vai emergir no puro presente e vai lutar com esse presente, como se luta com o mar, como o náufrago luta com as ondas do mar para arrancar a esse presente o seu mistério, a sua força e para atravessar a realida­de para qualquer espécie de porto, para qualquer espécie de saída. Mas, para já, o mais importante era recuperar uma realidade que nos implicasse (...) e na qual nós reconhecêssemos as experiências fundamentais da existência humana».
«A ficção de Lobo Antunes vai servir como revelador daquilo que nós mesmos não queríamos ver, que nós mesmos não queremos ver, não apenas essa morte exterior, brutal, trágica que ele encontrou em África, mas outra realidade mais profunda, a nossa realidade de seres confrontados com qualquer coisa ainda mais profunda que a morte, que é a do sofrimento, a da injustiça que nós infligimos aos outros, a nossa própria miséria, os nossos terrores sepultos. Tudo isso ele vai realizar através da sua ficção, vai realizar a verdadeira psicanálise, mas desta vez não mítica, de Portugal, mas psicanálise visceral, profunda, daquilo que nós somos ou daquilo que nós imaginamos realmente ser. É este aspecto da ficção de Lobo Antunes que mais me tocou, e que me toca».
«(...) é dessa visão à Jeróni­mo Bosch, mas de um Jerónimo Bosch de hoje, do presente, da quotidiani­dade, daquilo que é realmente subalterno, daquilo que é triste, daquilo que é doloroso, daquilo que é crepuscular e daquilo que é o avesso da vida, o aves­so da realidade esplendorosa que ele vai ser o navegador. E é dessa realidade submersa, que ele traz, como se mergulhasse numa espécie de aquário, os pei­xes mais brilhantes. E, com isso, pouco a pouco, Lobo Antunes foi inven­tando um outro país, que é o nosso país».
«A obra de António Lobo Antunes é uma descida, não apenas nesse inferno particular que nós chamamos realmente de loucura, mas qualquer coisa de mais interessante e mais profundo. É uma descida a um subterrâneo, para empregar uma imagem de Dostoievski, que é um subterrâneo que sempre esteve presente, naturalmente, e que os grandes autores sempre foram capazes, de Dante até Dostoievski, de recuperar, mas que só de vez em quando emerge, só de vez em quando é reconhecido, só de vez em quando é que revela uma imagem onde nós nos reconhecemos. Eu, pessoalmente, reconheço-me nessa imagem. E, na literatura portuguesa, só há dois autores que desceram a esse tipo de profundidade: o brasileiro Machado de Assis e agora, em termos modernos, e mesmo pós-modernos (como dizem os nossos críticos), António Lobo Antunes; é esse mundo onde a razão e a “irrazão” estão profundamente relacionadas uma com a outra, como a carne e o espírito misturados, como o sol e a treva realmente misturados, esse é o mundo de António Lobo Antu­nes. E eu creio que o mapa mais próximo, mais verídico da nossa realidade agora, contemporânea, que nós possuímos, é aquele que se encontra na obra de António Lobo Antunes».


*A programação específica do São Luiz pode ser consultada online em http://www.teatrosaoluiz.pt/catalogo/detalhes_produto.php?id=244&month=8&year=2011

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

A Ópera do Falhado ou o trágico desencontro entre o ser e o parecer*



por J.P. Simões


Ante tal discurso, a humilde pro­prietária do café reage de acordo com o que fazem quase
todos os eleitores, ainda hoje, perante o charme e a demagogia dos po­liticóides:
«O senhor presidente fala tão bem, que eu até sinto que percebo tudo!»










«Os portugueses vivem em permanente representação, tão obsessivo é neles o sentimento de fragilidade íntima inconsciente e a correspondente vontade de a com­pensar com o desejo de fazer boa figura, a título pessoal ou colectivo. A reserva e a modéstia que parecem constituir a nossa segunda natureza escondem na maioria de nós uma vontade de exibição que toca as raias da paranóia, exibição trágica, não aquela desini­bida, que é característica de sociedades em que o abismo entre o que se é e o que se deve parecer não atinge o grau patológico que existe entre nós.»
Eduardo Lourenço, O Labirinto da Saudade


*
Apesar de todas as mudanças que os últimos 30 anos trouxeram a Portugal, houve uma coisa, profunda e movediça, que parece ter­-se mantido inalterável: a infatigável resistência à mudança, acompanhada sempre por uma obstinada necessidade de aparentar “progresso”, da sociedade portuguesa. Veja-se a Expo 98, ou o Euro 2004, e perceba-se até que ponto estes acontecimentos exuberantes e ostensivos, que servem para demonstrar que os portugueses “também conseguem” organizar extraordinários eventos, são contemporâneos da insuperável incapacidade de sair do sub-desen­volvimento social e cultural crónico onde nos arrastamos há, ouso dizer, milhares de semanas. Compare-se com o acontecimento-chave do Estado Novo, a Exposição do Mundo Português de 1940: salvaguardadas as devidas distâncias, o sintoma é o mesmo. Já agora, prosseguindo a aritmética, multiplique-se o sintoma pelos inúmeros outros exemplos que quotidianamente saltam pelas janelas da informação como se fossem novidades escandalosas, do tipo “estudo da União Europeia revela que os portugueses vivem acima das suas possibilidades” ou “a população da Lagoa Seca acolheu em festa os novos submarinos da armada portuguesa”. Por trás de uma enorme fachada de desenvolvimento tecnológico e social im­portado, as raízes de uma mentalidade do tipo feudal, baseada na predominância de algumas famílias e de toda uma horda de ca­ciques, que se assumem como donos das instituições públicas e que alimentam um sistema de ascenção social e económica baseado em esquemas de favores em cadeia, continuam fortemente implan­tadas. Enfim, foi a partir deste trágico desencontro entre o ser e o parecer que nasceu a ideia para a elaboração da Ópera do Falhado, comédia musical que serve aqui de pretexto a algumas considerações à volta dessa disposição mental que parece persistir ferozmente no nosso belo país.




*

«é preciso que algo mude para que tudo fique na mesma.» Essa mudança mágica, esse grande sortilégio que faz os falhados sentirem-se realizados sem terem que mudar nada de fundamental nas suas vidas, foi grandemente inspirado na análise que o ensaísta Eduardo Lourenço fez no Labirinto da Saudade à estratégia propagandística do Estado Novo: à grande miséria civi­lizacional do povo, contrapôs-se uma teia de imagens de glórias passadas, habilmente transformadas em elixir de orgulho e espartilho anti-revolucionário para uma nação estagnada. Se há coisa que é típica nos ditadores, é de facto este totalitarismo cultural: totalita­rismo entendido enquanto versão oficial de um povo e da sua história, imposto enquanto verdade total e impermeável a outras interpretações.




*




Em resumo, o Falhado poderia ser um drama fáustico, visto que os seus personagens sofrem pela impossibilidade de se transforma­rem no que sonham, mas acaba por ser essencialmente uma comédia portuguesa pela forma como todos se satisfazem em apenas aparen­tar ser o que gostariam e também pelo modo mágico e simplista com que tudo se dá por resolvido porreiramente porque já ninguém tem vontade de discutir mais. Há coisas que não mudam ou que mudam muito lentamente e só quando existe vontade para tal ou alguma hecatombe: a Ópera do Falhado procurou ilustrar algumas imutâncias da nossa sociedade, nomeadamente essa dolorosa questão estética dos portugueses com a imagem que transmitem de si pró­prios aos outros e o grande fosso entre as expectativas irreais e o pouco empenho real na sua conquista, sendo que o fosso acaba por ser o sítio onde se vive. Naturalmente que também se procurou dar um contributo social mais imediato, através da sugestão de soluções para estes problemas, em particular pela voz e acção do Ditador que a todos encaminhou para um final feliz. Vendo a sua gloriosa memória ameaçada e a incapacidade dos vivos em resol­verem sozinhos os seus problemas, o Ditador, com um Grande Sortilégio, forneceu a todos a memória de um extraordinário passado individual, de modo a assegurar que todos ficassem satisfeitos com o presente, garantindo assim a alienação geral e a suave e discreta continuidade do seu reinado de resignação, de continhas bem feitas, de grandes eventos nacionaleiros e de saudade.


*Excertos do texto publicado com o título "A Ópera do Falhado: às voltas com uma ópera portuguesa" na revista Nau - Nacional A Universal, dir. António Coxito, nº1, s/p., Lisboa, Jan-Março 2005 e gentilmente cedido pelo Autor.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

No mundo como devir*

por António Pedro Pita

E qual é a sua cidade?
Nenhuma. O meu Paris Texas é São Pedro do Rio Seco

Eduardo Lourenço, em entrevista a Francisco Belard e Vicente Jorge Silva


Eduardo Lourenço é, ele próprio, a ficção inventada por Wim Wenders sob o título “Paris-Texas”: quem impôs o ensaio como efetivo modo de ser e de pensar, e não simplesmente como meio ou expressão, nisso se distinguindo de António Sérgio, seu adversário íntimo, só pode ser existência na errância infinita que encontra e desencontra, sem remissão nem finalidade.

Tentemos perceber.

Aconteceu ao jovem futuro filósofo começar a suspeitar da impossibilidade da filosofia.

Mas a impossibilidade da filosofia não é o fracasso do conhecimento. O discurso ensaístico é a escrita do aclaramento do devir, que é múltiplo, que é muitos, como os caminhos da floresta, os diabos e as bruxas. Uma escrita infinita, recomeçada mas nunca no mesmo ponto, uma escrita sem começo, porque sempre já começada noutras vozes e noutros tempos e noutras escritas e uma escrita sem fim, porque condenada, à maneira de um Sísifo feliz no seu encontro com Penélope, a ser outras, sem saber quais.

Mas, para além (ou aquém?) Eduardo Lourenço é, ele próprio, uma existência-ensaio, a viva e rara experiência da concentração do tempo no presente, uma captação deslumbrada do mundo, o desejo de percorrer todos os fios e os fios de todos os tempos que tecem o presente.

A dificuldade do seu pensamento reside aí: é fácil reduzi-lo ao cliché, permanecer no limiar da sedução poética do discurso, torná-lo fórmula ou citação.

Eduardo Lourenço não é, porque ninguém é, a consciência (moral ou ética ou cívica ou política) do Portugal contemporâneo.

Basta que continue a ajudar-nos a pensar – o que, se bem reparam, depende de nós. É da nossa capacidade de ler e escutar, de inscrever o imediato em mediações cada vez mais longas, de dar contexto e horizonte ao que parece irrelevante e local – é desta capacidade que depende a eficácia dos grandes pensamentos do nosso tempo.

Prudente e irónico, Eduardo Lourenço tem manifestado a convicção de não ser lido: homenageado, mesmo aclamado, sim; mas lido, fora de um círculo de estudiosos, verdadeiramente lido, isto é: efetivamente presente nas decisões sobretudo coletivas, aquelas que podem influenciar o percurso de um País que se diz (cliché:) ajudar a conhecer melhor, isso não.

Agora, em São Pedro do Rio Seco, Eduardo Lourenço não regressa ao Lugar de Origem nem ao Lugar de Destino ou Finalidade. A sua existência-ensaio inscreve-o na tensão de um singularíssimo devir entre uma Origem inabitável e sempre habitada e uma Finalidade habitada e sempre diferida. Eduardo Lourenço revisita, pois, o enigma do Tempo: entre o movimento permanente e a sua suspensão no plano da u-topia.

Com ele, adentramos o mundo como devir.



* Texto publicado em CNotícias, nº 28, Coimbra, 11/VIII/2011, p. 23 e gentilmente cedido pelo Autor. As fotos dizem respeito à Homenagem a Eduardo Lourenço realizada no passado dia 6 de Agosto na sua aldeia de São Pedro do Rio Seco e foram retiradas de http://www.facebook.com/#!/pages/Homenagem-a-Eduardo-Louren%C3%A7o/187656614624875?sk=photos