sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Um país com nome novo*

De todas as peripécias da nossa tardia e interminável “descolonização”, a de Timor não foi, e esperemos que o não seja agora, a mais lamentável e sangrenta. Mas foi, e não acabou de ser, a mais absurda e opaca. Absurda, precisamente porque nada havia nela que justificasse uma tal opacidade. Nem contencioso tipicamente colonialista nem ressentimentos, nem má consciência, salvo a de um abandono aflitivo do que mal tínhamos por nosso, impediam que tratássemos da questão de Timor – por nós criada com a atenção que merecia um povo que durante séculos estava à nossa guarda. Sobretudo com o máximo de distância em relação aos nos­sos mitos ou aos nossos interesses de antiga potência colonial. Provavelmente, sem a invasão, a “questão de Timor” teria sido re­solvida na única perspectiva que o caso requeria e a nós nos devia importar, a do povo timorense, se o povo timorense fosse aquele fictício interlocutor sem problemas que nos foi apresentado por quem tinha interesse nisso. Mas não era. E menos o ficou quando a Indonésia, contra todos os princípios de direito internacional, não só invadiu Timor como o converteu em território seu. Os dados da tragédia, até então circunscrita e interna, mudaram de sentido.
Síntese de um drama: A maioria do povo timorense tornou-se re­sistente, de facto ou de intenção, sem ter meios, nem militares nem político-diplomáticos, para se opor a tão odiosa ocupação. Só Portugal, ainda sujeito da legitimidade em Timor podia denunciar a vexação e levar para o palco internacional um conflito obscuro co­meçado num contexto não menos obscuro. Foi o que fez durante mais de 20 anos com postura diversa, ao fim dos quais é arrancada à Indonésia a promessa de um referendo de onde saiu (em princí­pio) um novo país ou um país com nome novo: Timor Lorosae. Este baptismo é uma espécie de síntese de um drama intermiten­te, ponteado por lágrimas e sangue em Timor, e vivido em Portugal na maior das opacidades sob a forma de um conflito “imaginário” entre nós e a Indonésia. Enquanto drama timorense, apesar desse sangue e lágrimas, a questão de Timor ficou subordinada ao braço de ferro diplomático entre uma grande potência regional actuan­do sem escrúpulos, e a antiga pequena potência tutelar duas ve­zes impotente mas decidida a fazer de Timor o último ponto de honra de uma aventura histórica em fim de percurso. E de tudo is­to, durante 20 anos, o povo timorense foi ao mesmo tempo a víti­ma, o herói e, por vezes, o álibi. Sem o drama timorense teve-se, ao longo destes anos todos, a impressão de que não teríamos uma política e uma presença internacionais dignas desse nome.
Passional e patética: É possível que uma vez consumado o nos­so “abandono” de Timor, as coisas não se pudessem passar de uma maneira muito diversa do que se estão passando. Mas o que não é aceitável é que toda esta dolorosa peripécia histórico-diplomática, de que o destino do povo de Timor é o centro aparen­te, se não tenha desenrolado com um mínimo de transparência, de informação, de discussão permanente acerca do que está em jogo. Era o nosso caso com a Indonésia, potência agressora, e bastava. Nenhum livro branco (ou negro), nenhuma discussão à altura da tragédia, nenhuma informação da complexidade e até da simples realidade de Timor, salvo a passional e patética que podia ser explorada para os sempiternos fins de interesse político nosso, o mais imediato possível.
Em plena vigência democrática, nem a curiosidade nem a paixão pelas nossas coisas e nosso destino foram mais satisfeitas em relação a Timor do que foram no tempo de Salazar as que diziam respeito a Goa ou ao resto do império que se devia defender sem nos dizer como e para quê. Era, pelos vistos, uma questão diplo­mática. E diplomática será até ao fim. Que fim? Façamos votos e mesmo no tarde, um pouco mais do que isso para que não seja o fim dos timorenses.


*Na próxima quarta-feira, dia 28 de Setembro, pelas 10h30, na Sala dos Capelos, e por designação da Faculdade de Letras, a Universidade de Coimbra vai distinguir com o título de Doutor honoris causa Xanana Gusmão, antigo Presidente da República e actual Primeiro-Ministro de Timor Leste. A cerimónia que terá como apresentante o ensaísta Eduardo Lourenço e o elogio do professor José Augusto Bernardes. Ler Eduardo Lourenço assinala o acontecimento, recuperando um texto que o ensaísta publicou , poucos dias após a realização do referendo que conduziu à independência de Timor Leste, com o título Um país com nome novo (Visão, Lisboa, 9/IX/1999, p. 66).