segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Anteontem, na RTP 3



O Princípio da Incerteza é um programa da nova grelha da RTP3, na qual participam Daniel Deusdado, Helena Matos e Viriato Soromenho Marques. Na sessão do passado sábado, o convidado especial, para ajudar a perceber a situação de Portugal, da Europa e do Mundo, foi Eduardo Lourenço. Vale a pena ver ou rever estes cinquenta e poucos minutos à conversa com o ensaísta.
Para tal basta carregar no link seguinte:
http://www.rtp.pt/play/p2043/o-principio-da-incerteza

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Paulo Cunha e Silva (1962-2015)*

Paulo Cunha e Silva à conversa com Eduardo Lourenço em 2003: «Vejamos, por exemplo, a pressão do défice. É o défice pelo défice, um problema numérico. Não se pensam política e economicamente as consequências.» Foto do jornal Público


JN: Olhando para trás, o que é que fica deste 2003? Este é um ano para esquecer? 
Eduardo Lourenço: O ano tem sido muito marcado por este escândalo de pedofilia que avassalou o País e se tornou uma fonte de glosa...Com muito nevoeiro à volta... Viu-se interpelado de manhã à noite sem respostas esclarecedoras. A gravidade do que aconteceu tem aparecido ligada à ideia de pecado, quando a pedofilia é sobretudo uma violência, a primeira violência. 
Paulo Cunha e Silva: Essa violência é mais exacerbada porque é praticada por pessoas em quem confiamos, próximas de nós… 
JN: Reparo que a questão da pedofilia, quando olham para o que ficou de 2003, é algo que aflora de imediato. Ela foi assim tão pesada para a memória deste ano? 
EL: Digo isso enquanto espectador de fora do País, olhando-o pela RTP... 
PCS: A pedofilia sobressai no triângulo justiça-media-política, alterou a relação entre a política e os media e colocou a justiça em discussão. E este é seguramente um dos traços mais marcantes de 2003: a pedofilia e a mediatização da justiça. 
JN: A minha expectativa era que começassem a falar da guerra... Mas a marca portuguesa é, no vosso entender, a pedofilia? 
EL: Na ordem interna, o acontecimento é esse. Na ordem internacional é a guerra do Iraque – e aqui a designação tem um juízo implícito uns chamam-lhe guerra, outros agressão. Eu chamo-lhe agressão, não por má-vontade ou antiamericanismo, mas porque a primeira das potências e os seus aliados não conseguiram fazer essa intervenção legitimando-se na ONU. 
JN: Há quem fale em IV Guerra Mundial... O ex-director da CIA James Woolsey e o professor Eliot Cohen, da Universidade John Hopkins, falam disso. A terminologia não é inocente? 
PCS: Penso que não. Mas o que caracteriza esta guerra foi a facilidade em chegar a Bagdade e a dificuldade em ficar em Bagdade. É uma guerra que voltou para trás. Uma guerra boomerang... Absurda. Esta guerra demonstra também que é muito difícil ganhar guerras... Ter o maior poder e a maior força não tem necessariamente como consequência a vitória. A guerra transforma-se em guerrilha rapidamente porque a honra do ofendido estilhaça-se e torna-se a semente da resistência... JN: Mas era uma guerra necessária? 
PCS: De maneira nenhuma. As notícias que culminaram com o famoso peru de plástico (exibido por Bush no aeroporto de Bagdad no Dia de Acção de Graças) confirmam esta guerra como um simulacro, uma encenação total. Há toda uma construção que faz desta guerra uma espécie de guerra do Solnado, não fosse a sua dimensão trágica... 
EL: Isso pelo lado dos actores, dos que se responsabilizaram por essa não guerra... Já a Guerra do Kosovo tinha sido uma não guerra. Porque para ser uma guerra são precisos dois adversários. No Iraque foi uma punição, uma extensão abusiva e não fundamentada do ataque ao Afeganistão na sequência do 11 de Setembro. Mas aí ainda se podia compreender... Uma grande potência atacada não podia ficar calada, quieta, a opinião pública não admitia... Agora, a intervenção no Iraque foi preparada para criar uma espécie de imunidade... O terrorismo existe, mas há uma mitificação do terrorismo para justificar a agressão... 
JN: É urgente voltar à política? 
EL: A política nunca desaparece. Mas é urgente que a ONU, que não deu o seu aval à intervenção, entre neste processo. O problema é que os EUA querem agora uma espécie de pós-legitimação… Salvar a face... 
PCS: A ONU foi dispensada e desprezada. Agora são os EUA que mais precisam da ONU para que a sua saída não seja um desastre. 
JN: Lembro-me de ter lido Eduardo Lourenço dizer que a Europa tinha sido a principal vítima desta guerra... 
EL: Foi a primeira vítima. Os EUA dividiram a Europa... 
PCS: Demonstrou-se que a Europa não está preparada para a guerra, que não sabe fazer guerras. É uma Europa que será cada vez mais pacífica... 
EL: ...Esta Europa que tem uma tradição de guerra assume-se agora como continente pacífico por excelência. Este chegar à idade da sabedoria coincide com a circunstância de a potência dominante a encarar como um continente que já não sabe o que quer. Uma «velha Europa», na terminologia de Rumsfeld, a mesma que antes era «actriz da História». Uma Europa que está fora do jogo histórico, numa espécie de neutralismo, de nova Suíça… 
PCS: ...Poderia ser uma Europa tampão, até pela sua situação geográfica, mas não. É uma Europa tapada... Um continente passivo, por cima do qual se passa para se chegar ao alvo... 
EL: Essa situação não é nova. Caracterizou a Europa desde o fim da Guerra até à queda do Muro de Berlim. Simplesmente, nessa altura, a Europa estava entre duas tutelas (os EUA de um lado e a URSS do outro), mas tinha uma certa liberdade de acção… Depois, ficou sem adversário, de um lado, e sem pretexto, ambição. 
JN: Há um traumatismo do passado? 
EL: Devíamos glorificar-nos, estar contentes, porque depois de tantas guerras, sobretudo depois de duas grandes guerras suicidárias, somos um exemplo de paz. 
JN: A realidade é que não estamos contentes. A Europa ficou dividida e não se percebe por onde vai ou quer ir... 
EL: É uma história de rivalidades, de conflitos. A História ainda não desarmou! E o armar-se já não tem a eficácia que tinha. E se vamos para uma espécie de neutralismo idealista, então temos de o assumir... 
JN: E deve ser esse o caminho? 
EL: A Europa deve construir-se de modo a poder ser um verdadeiro actor político, que não é. 
JN: Para ser actor político tem de ser actor militar? 
EL: Fatalmente... 
PCS: O pacifismo da Europa deve ser um pacifismo activo. 
JN: Armado? Seria um paradoxo? 
PCS: Armado de argumentos... Com aparelho militar próprio, mas sem estrutura de ataque, uma estrutura dissuasora, de defesa. 
EL: Desenha-se agora uma Europa de defesa, que não esteja totalmente dependente da tutela da OTAN. É uma solução que me agrada, mas para que ela possa surgir, a condição implícita ou explícita para os EUA é que ela não se desligue da OTAN. Portanto, vai ser muito difícil conciliar as duas coisas. Quando o Pacto de Varsóvia se desfaz, o que parecia lógico era que o pacto da OTAN fosse revisto. Não só não foi revisto – porque essa é a condição de tutela, de relação de forças EUA-Europa – como ampliou a sua zona de influência, que agora vai até ao Afeganistão. Na verdade, a Europa está prisioneira da OTAN. PCS: Os interesses europeus são cada vez mais interesses mundiais. A Europa tem de ter a capacidade de ser uma força dissuasora para dizer que o mundo é de todos, o mundo é global. A possibilidade de os EUA intervirem fora do território europeu deve ser condicionada pela Europa. Não pode estar entregue ao livre arbítrio dos múltiplos senhores Bush que a América for fabricando. 
JN: Mas esta Europa, que ainda não é efectivamente uma união política, que procura redigir uma Constituição, esta Europa fragmentada pode ter a ambição de ser uma actriz mundial com força? PCS: É uma Europa complexa, mas essa complexidade, essa fragmentação é a sua força. É o território da diversidade absoluta e deve consolidar-se a partir dessa natureza fragmentária, dispersa, diversa. A pior coisa que poderia acontecer Europa era uma unificação uniformizadora. Esta Europa é feita de dissonâncias, das múltiplas linguagens. É isso que faz com que seja interessante. Uma Europa branca, neutra, uns Estados Unidos da Europa são qualquer coisa que me repugna. 
EL: Estou de acordo. A Europa tem um dinamismo cultural único no mundo. Mas, em termos políticos, e em termos de paz e de guerra, a divisão nunca foi uma vantagem. Nesse capítulo, estamos como a velha Grécia a sucumbir a Roma, mesmo se na ordem cultural a Grécia colonizou Roma. No plano da defesa, uma Europa-nação não sei se seria tão sábia, equilibrada... Ou então tomamos outra opção: preocupamo-nos apenas com uma pacificação ad hoc... 
JN: Quando Eduardo Lourenço afirma que «a Europa não pensa nada, ou, se o pensa, não tem convicção ou poder para propor, ao menos, os seus sonhos», o que quer dizer? 
EL: A Europa não existe. É um mito da própria Europa. É um mito que tem consistência na ordem da História, da memória, da cultura. Agora, nunca existiu como actor político. Todas as nações que num certo momento foram hegemónicas tinham esse sonho. A Europa esteve sempre fora de si própria... PCS: A Europa foi sempre pequena de mais para os seus sonhos e para as suas ambições… 
EL: Não quer encontrar-se consigo própria, mas quando se encontrar esse sonho é menor do que os sonhos que já teve. A Europa não pode ter o sonho que a Inglaterra, sozinha, teve no século XIX ao dominar o comércio e a finanças mundiais. Tal como Portugal e Espanha no século XVI... A Europa esteve sempre fora dela. 
JN: A essa casa comum da Europa, que se fez também de laicidade, aflui cada vez mais gente: do Oriente, do Sul... Hoje, proíbem-se símbolos religiosos nas escolas. Há aqui algum perigo de uma fricção explosiva no coração da Europa? 
PCS: Há. A Europa da tolerância, da diversidade, tem de permitir que as mulheres possam usar burca. O não usar não pode ser autoritário. Uma Europa verdadeiramente democrática tem de admitir outros comportamentos, culturas. 
EL: Para já, o problema ocorre em França, pode estender-se à Alemanha, à Itália. A Inglaterra, confrontada com o mesmo problema, não reage da mesma maneira. A laicidade é virtualmente uma invenção europeia, mas a França fez dela a religião francesa... 
PCS: Uma religião política... 
EL: Quando a cultura francesa era universalizante, no séc. XIX e na primeira parte do séc. XX, a França pensava que o seu modelo tinha um privilégio de universalidade e que não era preciso nenhuma missionação para ser aceite. Acontece que a França não está em condições de o impor aos novos franceses que desde há 30 anos vieram da Argélia, do Magrebe, do Islão. Ao ponto de, actualmente, a França se ter tornado uma terra descristianizada, no sentido sociológico. As suas catedrais estão desertas... 
PCS: Mas as mesquitas estão cheias... 
EL: Ocupam esse espaço, coisa que há 50 anos nos parecia impossível. A nova lei é um problema. Eles pensam que a laicidade não é ideológica. Mas é. 
JN: E como é que tudo isto pode ser visto à luz de um País que viveu um ano difícil, de depressão, psicológica, económica, com a obsessão do défice? Este País vai recuperar em 2004? 
EL: Já estamos tão metidos na dinâmica europeia e global que aquilo que vai acontecer no próximo ano dependerá do que vai acontecer aos nossos vizinhos. A nossa capacidade de adaptação foi sempre grande. Simplesmente, antes tínhamos para onde fugir, um refúgio. Agora não temos. Fugimos para a nossa própria casa. A Europa – «grande nau grande tormenta» – é a nossa casa. 
PCS: Temos uma alma ciclotímica, no sentido de que nos deprimimos e euforizamos com muita facilidade. Se houver sinais de alguma retoma, alguma luz, 2004 pode ser um ano eufórico. 
EL: Pode ser, e espero que seja, um ano eufórico. Mas suponha que, para azar nosso, Portugal fracassa no Euro, vem aí uma depressão que nem queira saber... 
PCS: Os estádios são os nossos divãs. Fazemos aí a nossa análise e a nossa psicanálise. Até têm a forma de receptáculo. O relvado parece o divã onde nos deitamos, onde nos exorcizamos. 
EL: Em França, a vitória no Mundial foi como se tivessem feito três revoluções francesas em vez de uma! E fizeram uma leitura curiosa. Deram-lhe um conteúdo ideológico, foi uma festa da nova França multicultural. 
PCS: Portugal vai ficar futebolizado até Julho, num estado de adrenalina futebolística total, e no risco de ao primeiro penálti ficar em depressão absoluta. 
JN: Lembro-me de ter escrito, há algum tempo, sobre o estado do País: «O diagnóstico é mau, a terapêutica é violenta e o prognóstico é reservado. O doente chama-se Portugal.» E como quem escreveu isto é médico, que terapia violenta precisa Portugal? 
PCS: O problema é que os diagnósticos já foram todos feitos e a terapia deveria ser óbvia. Simplesmente, não há quem aplique a terapia nem sei se se conhece a terapia. Não há volta a dar. A nossa matéria genética, de que Eduardo Lourenço fala tão bem, impede-nos de pensar o mundo de outra forma, de ultrapassar esta condição bipolar: ora maníacos, ora depressivos. E por isso temos dificuldade em programar, não temos capacidade de prognóstico. Temos bons corredores solitários, mas não temos pelotão. 
JN: A dificuldade de organização residirá no facto de os pequenos problemas nos desorganizarem demasiado e nos inibirem de olharmos mais largo? 
PCS: Não temos a noção de hierarquia entre o acessório e o essencial. Somos incapazes de periodizar, de identificar prioridades. Perdemos um tempo infinito com o que é lateral e esquecemos o que é nuclear. 
JN: A política do País é a pequena política? 
EL: Aqui só a palavra do político, o poder, as maiores banalidades, é que têm alguma relevância… PCS: A política em Portugal é muito a arte da sobrevivência, de ultrapassar o pequeno problema hoje, amanhã pensamos no que vier... 
EL: O problema do País é não acompanhar o ritmo em que a Europa vive ou quer viver. Estamos nesta Europa, mas os nossos handicaps impedem-nos de estar à altura de um comportamento médio, eficaz. Queiramos ou não, temos uma competição latente com a vizinha Espanha. E como temos este contencioso, a ideia de preservar a nossa identidade… A língua e a nossa memória são um peso tão forte que não receio nenhuma perda de identidade neste campo. No campo prático, das tecnologias, do comércio, é que podemos ser colonizados lentamente, mais ou menos delicadamente. 
PCS: Vejamos, por exemplo, a pressão do défice. É o défice pelo défice, um problema numérico. Não se pensam política e economicamente as consequências. 
JN: Há quem diga que os nossos melhores valores, os académicos, os políticos, são pessoas pessimistas, muito azedas, que não têm a preocupação de dar um estímulo positivo ao País. É uma sina portuguesa? 
PCS: É uma metáfora do próprio País... 
EL: A ideia subjacente é a de que também os mais bem-sucedidos cantam essa cantiga da lamúria, de que tem falado o nosso presidente da República. Estamos sempre a funcionar pelo olhar do outro, do estrangeiro. Estamos sempre a olhar para o espelho... 
PCS: Mas quem está no espelho não somos nós. Quando olhamos o espelho estamos sempre à espera de alguém que nos diga sim, que nos possa confirmar. 
EL: Uma coisa é a ordem política e a do bem-estar, outra a ordem cultural. Comparando o nosso país com países que têm mais ou menos a mesma dimensão, há aqui uma criatividade muito forte. A Holanda ou a Hungria não têm mais visibilidade cultural do que Portugal. 
JN: Daqui a alguns meses completamos 30 anos de um ciclo democrático e olhando para trás podemos dizer que Portugal evoluiu muito. Ou não? 
EL: O ganho foi termos recuperado o País para a democracia. O País nunca tinha estado tão açaimado. Nestes 30 anos foi capital a nossa entrada na Europa. Saímos de África, mas esse problema ainda não está resolvido em termos de futuro. 
JN: Não está resolvido porque não fez ainda a catarse? 
EL: Não sei se se fará. Os portugueses vão diluindo as coisas... Perdemos o império sem sabermos realmente o que perdemos, porque também não sabíamos bem o que é que lá estávamos a fazer. A Metrópole não sabia. Nem queria saber, tirando o Marquês de Pombal ou o Sá da Bandeira... Não fizeram o Brasil. O Brasil fez-se... Agora, nestes 30 anos, Portugal mudou. Quando penso na minha aldeia, fico com a ideia de que este País passou da Idade Média para a Disneylândia. 
JN: Paulo Cunha e Silva é mais novo. Sente o mesmo? 
PCS: Há 30 anos tinha dez! Estes 30 são os anos da minha vida enquanto experiência de conhecimento, de mundo. O meu desenvolvimento foi simultâneo com o do País. Acho que também aqui o desenvolvimento do País é um pouco esquizofrénico. Há territórios muito desenvolvidos, de ponta, em termos culturais, em termos científicos, mas continua a existir um País degradado, terceiro-mundizado. Sem segundo mundo, apesar do País ser estatisticamente mediano. 
EL: Conquistou-se um mínimo de bem-estar. O facto de as pessoas se poderem servir de coisas sofisticadas como os telemóveis – nos países com um desenvolvimento menos harmónico esses saltos são mais naturais, funcionam como compensação – não quer dizer que por dentro, a nível intelectual, cultural, essa gente seja muito diferente da que conhecemos há umas décadas. A divisão marca-se naqueles que descolaram em grau de conhecimento. 
PCS: Há um falhanço da educação... 
EL: Houve massificação, um progresso, mas não cobriu defeitos de base, antigos. Criou até handicaps de outra ordem: a pretensão de saber o que não se sabe, de palrar de tudo... 
 
 
*Paulo Cunha e Silva, Vereador da Cultura da Câmara Municipal do Porto morreu esta madrugada aos 53 anos de idade, vítima de ataque cardíaco. Ler Eduardo Lourenço homenageia o médico, o académico, o professor e sobretudo o político culturalmente empenhado, reproduzindo uma espantosa conversa que Paulo Cunha e Silva manteve com Eduardo Lourenço, com a moderação de António José Teixeira, na qual se faz um balanço do ano de 2003. O texto foi publicado em Jornal de Notícias (31/XII/2003, pp. 4-7).

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Socialismos & Convergências

«Os textos políticos de Eduardo Lourenço não resolvem o problema político: fazem parte dele. É este o seu interesse e é este o seu limite». O autor destas palavras foi o analista político Joaquim Aguiar que, de resto, continua ainda hoje a fazer comentários sobre a actualidade portuguesa. O leitor pode encontrar a totalidade deste ensaio, intitulado “A esquizofrenia sublime”, no número especial que a revista Prelo dedicou em Maio de 1984 ao autor de O Labirinto da Saudade. Vale a pena relê-lo sobretudo para se perceber a falta que fazem os textos políticos de Eduardo Lourenço, mormente num tempo em que, infelizmente, o ensaísta pouco tem escrito (ou, pelo menos, publicado) sobre os acontecimentos que marcam a nossa cena política. Ler Eduardo Lourenço não tenciona interpretar silêncios, tarefa sempre bastante arriscada, aliás. Muito menos deseja revelar o teor de conversas privadas. No entanto, Ler Eduardo Lourenço pode garantir que o ensaísta mantém bem viva a sua paixão pela política e a atenção do seu olhar sobre a realidade portuguesa não perdeu nenhuma das suas bem conhecidas qualidades.
Eduardo Lourenço num almoço de apoio a António Costa. Na foto vê-se também, à esquerda do ensaísta, o cantor Camané

De resto, Eduardo Lourenço continua a intervir na vida política. Mas, se é verdade que é bastante procurado pelos jornalistas para curtos comentários acerca da actualidade, Ler Eduardo Lourenço lastima que, nos últimos anos, não apareçam nos jornais textos do ensaísta que, mais tarde, poderiam corresponder a capítulos de novos livros que seriam, por assim dizer, os descendentes de títulos como O Complexo de Marx (1979) ou O Fascismo Nunca Existiu (1976). Talvez assim fosse possível ver o que hoje se passa em Portugal não com um olhar bacteriologicamente puro (haverá ainda quem acredite em tal ficção?), mas com a ajuda de uma perspectiva que, não sendo a-ideológica, sempre acrescentava alguma lucidez ao debate público. Como escrevia também Joaquim Aguiar, no já citado artigo, os textos de Eduardo Lourenço são, entre outras coisas, «a manifestação de uma vontade de diálogo ético com os responsáveis políticos e, em especial, com os dirigentes socialistas [leia-se: do PS]». Num momento em que, mais do que nunca, a esquerda (melhor dito: as esquerdas) vive(m) numa decisiva encruzilhada, essa vontade talvez seja mais necessária do que nunca.
Eduardo Lourenço e Melo Antunes num Congresso da UEDS em 1976.
À falta de texto sobre os dias que correm, Ler Eduardo Lourenço recupera um artigo do ensaísta, intitulado “Do socialismo como convergência" e que veio a público na revista Opção em 23 de Junho de 1977, tendo sido dois anos volvidos integrado em O Complexo de Marx. Ou seja, o texto foi redigido em pleno período de crise política, uma vez que o I Governo Constitucional, apoiado pelo PS, liderado por Mário Soares e com Medina Carreira como Ministro das Finanças, se via forçado a negociar com os outros partidos parlamentarmente representados, pois não dispunha de maioria na Assembleia da República. A hesitação do PS foi, de resto, habilmente aproveitada pelos partidos à sua direita que, de imediato, acusaram Mário Soares de se voltar para a esquerda comunista em busca de apoio para o seu Governo. Meses mais tarde, o PS escolherá o CDS para formar o II Governo Constitucional que, como se sabe, durará pouco mais do que seis meses. Mesmo sem ousar estabelecer paralelismos entre dois tempos e duas circunstâncias tão diferentes, é forçoso relembrar que a expressão convergência democrática designava o propósito político de PSD e CDS formarem um Governo que, apesar de constituído por dois partidos que não tinham sido os mais votados, garantiria, ainda assim, um suporte maioritário na Assembleia.




DO SOCIALISMO COMO CONVERGÊNCIA (1977)

 

                                               Torna-se urgente aprofundar o debate sobre a fronteira que separa o “regresso ao capitalismo” e a “transição para o socialismo”

num contexto de crise económica como o que vivemos

A. Reis, Opção, nº 13, Julho 76


(…) é curioso ouvir Mário Soares falar de novo,
ao fim de quase um ano de um ano de omissão,
transição para o socialismo.
Expresso, ed. 5/6/76



O impulsionador da “convergência democrática”, antecipando um pouco, encontrou já a palavra de ordem sob que se travará a futura batalha política portuguesa, tanto a nível parlamentar como eleitoral: a convergência marxista. Num contexto como nosso, ao mesmo tempo favorável aos simplismos mais crus e a subtilezas que têm por elas quarenta anos de pregação não esquecida, esse futuro cavalo de batalha não é mal escolhido. É sem dúvida pouco popular, mas o óbvio, o de convergência comunista já foi usado até à corda e, mau grado toda a convicção polémica do Dr. Sá Carneiro, convém mal a um adversário político que se tem ilustrado na defesa contra o dito comunismo. Salvo na esquerda pura e dura, o marxismo não tem em Portugal uma conotação muito favorável. O que o epíteto tem de vago, misterioso, e só por isso, de pouco tranquilizador, convém para designar um perigo ao mesmo tempo eminente, impreciso e grave. Sob a cruzada antimarxista se travará, pois, o novo bom combate da velha ou nova direita portuguesa para salvaguarda o essencial daquilo que a Revolução lhe deixou e tem vindo consolidando com não desprezível habilidade.
Naturalmente que esta estratégia ideológica ao nível verbal esbarra com um obstáculo sério: não só um dos parceiros da futura convergência marxista há muito deixou de se referir ao marxismo como sua cobertura doutrinal privilegiada, como é descrito, na sua prática política pelo mesmo Dr. Sá Carneiro ou seus próximos como um partido sociodemocrata. (Ver artigo de M. R. de Sousa no Expresso de 28 de Maio de 1977). O epíteto acusador, por conseguinte, só a um dos parceiros da hipotética “convergência marxista” se pode aplicar. Porque teima então o Dr. Sá Carneiro em aplicar e englobar o Partido Socialista naquilo que para ele é uma tremenda denunciação pública de que espera, como agora se escreve, suculentos dividendos políticos ou eleitorais? Em matéria de fetichismo ideológico o PSD supera os outros partidos portugueses. A palavra deve criar a coisa, o hábito verbal vestir à força o monge pouco recomendável. Não tendo podido, apesar dos notáveis esforços tentados, não sem êxito parcial, celebrar justas e ricas núpcias com o PS, o PSD considera como fatal que não fica outra alternativa para o PS que o de cair nos braços tenebrosamente marxistas do Dr. Álvaro Cunhal. Pouco lhe importam as denegações públicas espectaculares do PS, obrigado a reafirmar de semana a semana que não cairá em tais laços. Não se cai onde se quer, pensa sem dúvida o Dr. Sá Carneiro. Tanto ele como o seu novo aliado, ou vice-versa, não ignoravam antes da famigerada cimeira cor-de-rosa as disposições neutrais do Dr. Mário Soares. Exactamente por não as ignorar é que lançaram a sua “convergência democrática”. De homens tão hábeis, uma tentativa destinada, como era previsível, a não obter êxito imediato, a produzir mesmo um efeito oposto, não deixa de espantar. Enganaram-se de porta? Cometeram a falta sem perdão possível? Como explicá-la? 
Da análise da situação portuguesa, do exame da prática governamental, os dois dirigentes do CDS e do PSD concluíram que não havia em Portugal espaço político para o que, à falta de melhor, se poderia chamar uma convergência socialista. De resto, nenhum deles atribui qualquer sentido sério à ideia de “socialismo”, salvo em sentido pejorativo ou subversivo. Fiados no que sabiam e viam, concluíram que tinha chegado a hora de desmascarar o Partido Socialista, nem que para isso fosse necessário jogar ao poker político. Ou o Partido Socialista, coerente com o sentido geral do que tem sido a sua actuação, aceita “a convergência democrática”, ou só lhe fica como saída, queira-o ou não, uma outra convergência que será fácil denunciar como incoerente e pouco democrática ao mesmo tempo, a convergência marxista. O perigo que esta hipótese podia fazer correr, se fosse autêntica, não assusta os ideólogos do CDS e do PSD, como foi o caso outrora. Demais sabem eles que é uma hipótese meramente polémica, impraticável. Porque, aparentemente, empurram então o PS para essa imaginária saída fatal? Por isso mesmo? 
A táctica da “convergência democrática” é simples: sem o apoio tácito do CDS e do PSD o Governo de Mário Soares está condenado a prazo, ou pelo isolamento cada vez maior, ou pelo compromisso “marxista” que mata. O cálculo não é mau e tem a seu favor um passado de aliança objectiva que ultrapassou em muito a mera convergência pontual entre o Governo Mário Soares e os partidos agora fustigados com o labéu de partidos de direita, futura matriz do grande partido conservador que segundo o próprio primeiro-ministro nos faz falta. Felizmente, as cúpulas não fazem o que querem. Diante da ameaça directa, não só ao seu estatuto de partido no poder, como de interna deslocação, o Partido Socialista redescobre a sua vocação própria como maneira de escapar ao destino suicida que lhe é proposto. Essa redescoberta tem duas faces que se não ajustam: a do isolamento e da convergência. A do isolamento – embora mais fictício que real, por ser sobretudo tentação de compromisso com a sua direita – já deu todos os seus frutos. A da “unidade de esquerda” tal como é formulada e faria o jogo dos homens da “convergência democrática” é inexequível ou suicidária, nas circunstâncias presentes. Só fica margem para outro tipo de convergência, aquela em que os dirigentes do CDS e do PSD, por definição, não podem apostar sem se negar, mas também aquela em que influentes sectores do PS não têm acreditado: a convergência socialista. Está implícita na letra e no espírito da Constituição, está explícita nos estatutos do Partido Socialista e está sobretudo inscrita na acção, no pensamento e na vontade de milhares e milhares de militantes que já desesperavam de ver a prática do seu partido coincidir com a vocação da sua sigla. Na fidelidade do Partido Socialista à sua doutrina está a única salvação, para si mesmo e para o País enquanto país de vocação socialista. Que os Drs. Freitas do Amaral e Sá Carneiro não acreditem nela, é natural. Cumpre agora ao PS desiludi-los de vez, acreditando.