sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Quarta-feira, ao fim da tarde, em Coimbra, no castelo de sonhos de toda uma geração...

Foto Ler Eduardo Lourenço
Como Ler Eduardo Lourenço já anunciara vai realizar-se, na próxima quarta-feira, dia 5 de Novembro, pelas dezoito horas, na Casa da Escrita em Coimbra o lançamento público do II Volume das Obras Completas de Eduardo Lourenço que tem o título Sentido e Forma da Poesia Neo-Realista e Outros Ensaios. O volume, coordenado cientificamente por António Pedro Pita e que é também o autor do importante Prefácio “Inventar o Sentido do Tempo – Eduardo Lourenço e o 'Neo-Realismo' como problema”, foi organizado em torno do livro quase homónimo de 1968, no qual o ensaísta estuda três poetas de Coimbra (ou, pelo menos, com fortes vínculos à cidade onde todos estudaram), a saber: João José Cochofel, Joaquim Namorado e Carlos de Oliveira. Mas esta edição inclui ainda, como o seu título explicita, muitos textos menos conhecidos de Eduardo Lourenço, a maioria deles dispersamente publicados ao longo de mais setenta anos e outros que são mesmo inéditos absolutos. A apresentação da obra será realizada por Rosa Maria Martelo, Professora Associada da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, mas também poeta e ensaísta de méritos amplamente reconhecidos. Usarão ainda da palavra António Pedro Pita e, como é óbvio, o próprio Eduardo Lourenço. 
No dia da formatura de Fernando Namora, eis João José Cochofel e outros Amigos de ambos (foto Casa da Escrita)
Refira-se que, através da Casa da Escrita a Câmara Municipal de Coimbra recuperou a antiga moradia da família de João José Cochofel, situada no número oito da Rua João Jacinto. O projecto (aliás belíssimo) de arquitectura dessa recuperação é de autoria de João Mendes Ribeiro. Sobre essa casa quase mítica e na qual, ao contrário do que se costuma supor, Eduardo Lourenço não foi visita tão assídua como isso, o ensaísta escreveu, na década de Oitenta, o seguinte, num texto que agora integra este II Volume: «a magnífica casa de João José Cochofel, a sua largueza constituía para esse grupo uma espécie de lar e centro cultural. Havia algum picarismo nessa boémia neo-realista de que quase todos nós aproveitávamos, mesmo os não íntimos de Cochofel, como era o meu caso» (p. 366).  Por outro lado, na cerimónia de inauguração da Casa da Escrita estiveram presentes, entre outros, Maria Barroso, Arquimedes da Silva Santos e … Eduardo Lourenço que afirmou então: «Foi nos meus 19, 20 anos que conheci esta casa. E foi pela mão de Carlos de Oliveira que entrei em contacto com este grupo do Novo Cancioneiro. Esta casa foi o castelo de sonhos de toda uma geração que não aceitava a realidade só por ser realidade e que pensava que o mundo precisava de ser alterado, modificado, desconstruído», (“Casa da Escrita abriu portas em Coimbra”, Público, 29/XI/2010, p. 25).
Em suma, uma ocasião imperdível para, num local magnífico e cheio de simbolismo, poder ouvir  falar sobre o ensaísmo de Eduardo Lourenço, com a presença do ensaísta.
Eduardo Lourenço na Biblioteca Municipal da Guarda no ano passado: o prazer de pensar em voz alta! Na foto, vêem-se também, em segundo plano e da esquerda para a direita, Mário Vieira de Carvalho, António Pedro Pita, coordenador do II Volume das Obras Completas, Almeida Faria, Carlos Mendes de Sousa e João Tiago Lima: os dois últimos dirigem cientificamente a edição das Obras Completas (Foto do Centro de Estudos Ibéricos).

sábado, 25 de outubro de 2014

Fenomenologia do Muro


O excelente hors-série da revista Sábado que chegou hoje às bancas é, a vários títulos, memorável. Desde logo, porque se trata de um dossier, com algumas fotografias absolutamente espantosas, que evoca o quarto de século de um acontecimento singular na nossa contemporaneidade: a queda do Muro de Berlim. Para além da recuperação do inesquecível Fernando Assis Pacheco e do talentoso reporter que ele também sempre foi, neste caso «um dos primeiros jornalistas portugueses a chegar à cidade dividida» (p. 50), o leitor defronta-se com o que talvez seja um dos mais notáveis ensaios de Eduardo Lourenço dos últimos tempos: “De Jericó a Jerusalém – História de Muros” (pp. 58-59). Uma extraordinária fenomenologia do Muro de Berlim e, por via deste, do próprio conceito de muro. Um percurso, breve mas rigoroso, que vai desde das primitivas divisões de colmo até aos cordões sanitários de Israel: «Não há hoje muro mais simbólico no mundo» (p. 59). Mas que também reflecte sobre textos fundacionais da nossa civilização, como neste admirável passo: «Nenhum muro separava Caim e Abel. Segundo a letra bíblica, sugere-se mesmo – abrindo para uma insondável perplexidade – que a pulsão mortal de Caim se deveu à preferência de Deus por Abel. Aí estaria o “muro dos muros”, nessa espécie de descriminação do Criador a respeito de uma das suas criaturas. Ou o que a teologia chama Graça quando a preferência recai sobre Abel» (ibidem).
Talvez se possa (ou até deva) ler o texto que Eduardo Lourenço nos oferece hoje na Sábado em articulação com um outro artigo que, há precisamente vinte cinco anos, o ensaísta dedicou ao que chamou então “A derrocada da utopia”*, recuperando o título de uma famosa biografia que Eugene Lyons fizera de Estaline. Revisitando hoje esse ensaio de Eduardo Lourenço, é impossível não ser sensível a várias notas que, na altura, destoaram de uma espécie de optimismo geral numa Europa que finalmente se parecia reunir. Assim, Eduardo Lourenço sublinhava que, por um lado, «O muro de Berlim não caiu só para um dos lados, explodiu no interior de um sistema de forças que consagra, quarenta anos depois de Yalta, a ressurreição e a revanche dos vencidos» (p. 5). Mas, por outro lado, declarava que «a única questão grave que a actual derrocada põe não só ao antigo mundo comunista mas ao Ocidente é a de saber se, em seu lugar, para lá da libertação sem preço do horror ou da mentira institucionalizadas, surgirá um mundo realmente democrático ou qualquer coisa de imprevisível que poderia até “redourar” a imagem de uma utopia que acaba num banho de sangue. As democracias ocidentais têm alguns motivos de júbilo diante do que acontece a Leste, mas enganar-se-iam tragicamente imaginando que ocupam, por direito divino, o palco da história» (ibidem).
Alguns dos acontecimentos que vivemos e que, de certa forma, ainda estamos a viver, desde a queda do Muro até aos nossos dias, infelizmente encarregaram-se de dar bastante razão ao diagnóstico de Eduardo Lourenço que, à parte um comentário (de resto, não isento de equívocos) de Francisco Louçã no mês seguinte**, pouca repercussão parece ter tido na opinião pública portuguesa. Seria lamentável que “De Jericó a Jerusalém” não viesse a ter muito mais sorte nesse capítulo. Deseja-se vivamente o contrário, até porque, tal como “A derrocada da utopia”, é um fabuloso ensaio. A não perder, portanto!

foto de Ler Eduardo Lourenço


*Jornal de Letras, Artes e Ideias, nº 392, Lisboa, 9/I/1990, pp. 4-5. O texto, escrito em Vence no dia de Natal de 1989, será depois integrado em A Europa Desencantada
**“Para que lado cai o Muro? (sobre um escrito de Eduardo Lourenço)”, Suplemento O Jornal Ilustrado de O Jornal , Lisboa, 2/II/1990, p. 19.

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Rio Seco

por Jaime Rocha*
Jaime Rocha (foto de Carlos Lopes)



Para Eduardo Lourenço


Tudo acontecera numa tarde,
as ruas estreitas, o calor, os cães
ausentes. Um homem chegara com
um corpo tapado, tentando que a sua
nudez reaparecesse enquanto se colava
às paredes das casas.

Havia ali uma memória, uma leitura que
se incluía na sombra como uma grande
ave suspensa, um peso que irradiava
do alcatrão. E carreiros, pequenos
carreiros que investiam sobre os muros
velhos, caminhos que saltavam
as vedações para se misturarem com as
hortas roídas pelo tempo ……………….

E o homem sorria como uma criança
abrigada nas silvas, num jogo que mexia
com os mortos, os seus mortos, os dedos
sujos de terra.

O silêncio marcava o abandono das
árvores, as formigas escondiam-se nas
fendas e apenas alguns pássaros
procuravam alimento, pássaros doces
destinados a reconstruir o ninho.

Aqui havia uma casa, com uma janela………….


E a aldeia tomava uma cor decisiva, um
rumo, apontando para o fim do Rio Seco,
para as campas, para a claridade fria.

Já depois dos cardos, já depois de atravessar
as pracetas despidas, o homem zangava-se
com as pedras, as falsas pedras que taparam
inesperadamente a cal.

Só os comboios o faziam voar, as estradas
abertas que avançavam sobre os charcos.

Atrás, da esquerda para a direita: Hélia Correia, Jaime Rocha e Eduardo Lourenço.À frente vêem-se ainda o actor Diogo Dória e a escritora Eduarda Dionísio




*O poema Rio Seco foi escrito por Jaime Rocha, Poeta e Dramaturgo, após uma visita com Eduardo Lourenço efectuada a São Pedro do Rio Seco, por ocasião das filmagens do documentário Regresso sem fim, realizado por Anabela Saint-Maurice, de aqui já se falou por diversas vezes e no qual participaram, entre outros, Hélia Correia, Gonçalo M. Tavares e Pedro Mexia. O poema foi publicado em Correntes d'Escritas. Revista de cultura literária da Póvoa de Varzim, nº 11, Póvoa de Varzim, Fevereiro de 2012, p. 37 e foi há pouco reimpresso em Suroeste. Revista de literaturas ibéricas, nº 4, Badajoz, 2014, p. 76. As duas fotos inéditas que aqui acompanham Rio Seco foram gentilmente cedidas pelo Poeta que, assinale-se, acaba de lançar o volume Lâmina (Língua Morta, 2014).

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Palavra com poeta dentro (Sobre António Ramos Rosa)*


É o inconcebível infinito o seu puro nada

que nas palavras ressoa com a incandescência do ser.
António Ramos Rosa



Nenhuma realidade nos é dada fora da palavra que a nomeia. Isso não confere às palavras nenhum estatuto angélico. Pelo menos, aos olhos do meu caro António Ramos Rosa. Nunca as palavras lhe foram, como para outro grande poeta e amigo, aquelas «moradas de cristal» onde a música das coisas vem pousar como uma pomba. Para ele as palavras serão um pouco como aquele dedal de matéria negra de densidade infinita que os físicos atribuem aos “buracos negros” onde a luz do universo se afunda. É preciso lutar, sem fim, com a sua real obscuridade para recuperar mais fundo a luz nelas concentrada e perdida. Toda a poesia de António Ramos Rosa, a partir do momento em que abandona o conforto do poema como espelho da aparência exterior e suas seduções, vive deste esquizofrénico combate com a matéria mesma do poema, fulminada do interior pelo sentimento do excesso do real, mas mais ainda pela sua originária incapacidade de dizer o que diz. Onde Pessoa acaba, começa Ramos Rosa. Deve-se a António Ramos Rosa, no papel de garoto de Andersen, a observação de que a labiríntica poesia de Pessoa era, no final das contas, excessivamente inteligível. Não sei se nesta óbvia (mas não para toda a gente) observação, há ecos do diálogo que toda a sua vida manteve com o nosso comum amigo Vergílio Ferreira. Mas no que sob a pena do autor de Para Sempre relevava da polémica contra o transcendente “mistério-Pessoa”, em Ramos Rosa procede de uma intuição e de uma experiência capital de poeta confrontado com a obscuridade e a infinita tautologia da Palavra. A essência da palavra é o que esconde, o seu corpo de sombra, não o que revela. Pessoa percorrera, como ninguém, as aporias de uma palavra poética que não abdica de penetrar e ser lugar onde “o sentido” do universo se manifesta. A sua palavra poética vive e morre da vontade de circunscrever o espaço de sonho que separa ou une o Absoluto e o Nada. A sua visão e a sua aura consistem em dar um corpo de imagens e de metáforas a esta Busca do que segundo ele mesmo, se não encontra. A fulgurância do Real é inata na pupila, na imaginação, na palavra de Ramos Rosa. É o seu excesso que o fascina e o destrói. Nada há de mais claro neste poeta do nosso Sul que o muro branco, a cal, a luz que os des-realiza. Obscura, impenetrável, anti-matéria dessa matéria fulgurante que nós vemos e nos vê, é a palavra poética que não pode substituir o real mas não pode ofuscar¬-se diante dele sob pena de não existir. Entre a “Palavra e a Coisa” – e não é um acaso que tenha sido Ramos Rosa o tradutor do memorável ensaio de Foucault – se abre aquele espaço que durante toda a sua vida tem oferecido aos desvelos do autor de Animal Olhar uma inesgotável fonte de perplexidade e de inspiração. O clássico caminho da metáfora não era o que se impunha para sobrevoar este campo minado. A Palavra sobre o mundo, a palavra sobre a palavra onde o mundo se diz e se perde, foram sempre a sua obsessão, fascínio e martírio indissociáveis. Poesia da reiteração infinita, alguns a encontrarão monótona ou imóvel, mas esse é o preço da fidelidade essência mesma de uma visão poética que tem como horizonte uma Palavra que, por definição, é, sem fim, o som e o eco de si mesma. Com um Poeta dentro. Um grande Poeta. 
*António Ramos Rosa faria hoje noventa anos. A efeméride é assinalada, esta tarde, na Biblioteca Nacional, em Lisboa, com o lançamento de Poesia Presente, um volume organizado por Maria Filipe Ramos Rosa e editado pela Assírio & Alvim. Ler Eduardo Lourenço evoca a memória do poeta recuperando um texto do ensaísta, redigido em Vence a 22 de Setembro de 1999 e que foi publicado no número cinco da revista Relâmpago (Outubro de 1999, pp. 7-8). 
Na sessão de lançamento, serão ditos poemas de António Ramos Rosa por Susana Neves e Paulo Filipe Monteiro. Intervirão também Richard Zenith e Ana Paula Coutinho Mendes, Professora da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. A não perder.

terça-feira, 14 de outubro de 2014

A escolha de Agustina*


Agustina Bessa-Luís
A importância política que uma sociedade concede aos seus escritores, artistas, sábios e mais latamente ao que se costuma designar como “intelectuais” podia ser um excelente barómetro do seu grau de democraticidade. Maior é essa importância, menor é o tónus democrático dessa sociedade. Por isso, em In­glaterra ou nos Estados Unidos, os “intelec­tuais” gozam, enquanto tais, de tão pouca importância política. São sociedades sem quere­la teológica interna, ou por coerência sócio-­ideológica profunda ou por ultrapassagem histórica desse tipo de antagonismo de fundo. Emerson ou Bertrand Russell não desmentem este lugar-comum da vivência democrática anglo-saxónica e, hoje, também nórdica. Só nos países do “sul”, o intelectual continua a desempenhar o papel, real ou fictício, que o pastor protestante, por livre consenso, se atri­bui e lhe é atribuído como “director de consciência”, inseparavelmente religiosa e cívica. Direcção de consciência que tem pouco a ver com aquilo que assim denominávamos no nosso mundo católico, pois, no mundo protes­tante, o pastor é apenas uma mera “especialização” da condição pastoral de cada cristão comum. Não era em nome da política que ho­mens como Thoreau, Emerson, Bernard Shaw ou Bertrand Russell se dirigiam ao seu público, mas como “moralistas” e sempre a título individual.
Outra é a tradição ibérica, a dos Unamuno, dos Ortega y Gasset ou de António Sérgio. Por determinação própria ou pelo contexto, as respectivas “mensagens” adquirem logo uma aura e são transcritas, sem excepção, no registo já pronto da política. O fenómeno não teria grande interesse se fosse apenas o da me­ra inscrição numa esfera a que, ao fim e ao ca­bo, nenhum acto público com algum relevo escapa. O que é interessante é verificar que es­sa leitura é, de algum modo, uma leitura per­versa ou, pelo menos, pervertida. A opinião política do grande escritor, político ou sábio vê-se logo dotada de uma exemplaridade, de um suplemento de lucidez acerca dos negócios públicos que, em geral, pouco ou nada devem a uma reflexão séria dessa ordem e tudo à excelência ou à reputação devidas ou merecidas pelo talento ou pelo génio numa ordem de va­lores que nada tem a ver com a primeira.
Na realidade, trata-se menos de uma confu­são de género – ninguém se deixa abusar realmente por essa amálgama entre valores diferentes – que de uma transferência de reputação do seu lugar próprio para outro inde­vido. Em suma, uma clássica operação de publicidade. Um signo de valor reconhecido aceita ser associado a um produto sem relação alguma com esse valor: McEnroe, por exem­plo, a uma máquina de barbear. A diferença entre o uso publicitário de uma reputação des­portiva e de uma reputação intelectual será apenas a dos efeitos de feed-back, dos riscos inerentes à segunda de que a primeira está imune.
A recente adesão de Agustina Bessa-Luís à candidatura de Freitas do Amaral parece ter suscitado, além da surpresa, algum escândalo. Talvez por se saber que a autora de Sibi­la jogara na última batalha presidencial uma carta diversa da actual. A surpresa e o escândalo mostram que não nos habituámos ainda a servir-nos do espaço de livre escolha criado pelo 25 de Abril. Numa sociedade livre, nada é mais precioso que o direito ao erro e à contradição, se é que alguém está em condições de os definir sem tocar nas bases da própria vivência democrática. É excelente que Agusti­na possa escolher quem ela acha com qualida­des para ser Presidente, como é excelente que cada um de nós, com idêntico privilégio de es­colha, opte por outro candidato.
Talvez a única coisa estranha tenha sido o seu reflexo de justificação dessa escolha. Ninguém pode e ninguém tem o direito de exigir esse género de justificação. Exigiu-o a si mes­ma? Tinha consciência de que esse seu gesto suscitaria estranheza ou espanto, dada a sua atitude passada? É problema seu, não nosso. Agustina tem todo o direito de usar o seu ca­pital de celebridade como bem o entende e não é culpa dela se a nossa sociedade, ainda pouco democrática, confere ao seu gesto uma importância e um alcance políticos desmedi­dos. O reverso da medalha é que tal gesto, por sua vez, terá de ser apreciado e julgado como gesto político que é, e não como mera atitude “artística” que não tivesse consequências de ordem prática. Numa sociedade democrática, o “alistamento” político de um escritor não tem mais importância do que o de outro cidadão qualquer. Mas também não tem menos.
A adesão de Agustina é um acto político na­tural. Todavia, como ela é, cultural e sociolo­gicamente, uma pessoa “representativa”, além de natural, esse acto é relevante e exemplar pela simples razão que suscita comentários (este, por exemplo) e, iniludivelmente, imitação e aplauso.
Não sendo a obra romanesca de Agustina uma obra de incidências ou preocupações “políticas” de imediata relevância, uma opção tão clara dessa ordem pode de facto surpreender. Alguns esperariam, dada a sua visão de­sencantada da História ou o olhar cruel que costuma pousar sobre a comédia social, priva­da e pública, que Agustina tivesse preferido o papel mais seguro ou mais cómodo de “es­pectadora” dos conflitos do nosso baixo mun­do. Creio que seria uma má transcrição da to­nalidade geral da sua obra, do seu profundo gosto de autoridade e ordem, sob formas ou arquétipos ancestrais, bem presentes na socie­dade nortenha, de que é a Xerazade incansável. A escolha política de Agustina parece-me certa com o sentido e o tom da sua ficção. Não é que esta se resuma naquela – seria impen­sável –, mas não há contradição entre am­bos. Como Faulkner, ideologicamente, a grande Agustina é uma “sulista”, o aedo de um Portugal profundo, que não corre a fogue­tes, senhorial e plebeu, desdenhosa do “democratismo” apressado e urbano que domina a cena política, capaz de sarcasmos e ironia em relação ao seu próprio meio e mundo, mas vivendo dele e nele pela imaginação e fruição de cada instante. Não é por acaso que Agusti­na se reporta a um enraizamento comum dela e do seu candidato no mesmo húmus arcai­zante, na mesma memória familiar, em senti­do próprio, no mesmo “meio”.
Decididamente, Agustina está agora no seu sítio certo. Aquele onde nunca deixou de es­tar, antes e depois do 25 de Abril. Talvez o que não estivesse certo era outros quererem­-na, ou supô-la, num lugar que não era o dela. Não há, pois, escândalo nem contradição séria na actual tomada de posição política de Agustina, por mais espectacular que tenha parecido. Ninguém tem culpa que os outros se enganem sobre nós. Nem na sua obra nem nas suas declarações conhecidas ou actos públicos bem lidos houve alguma vez conceitos ou ges­tos que a situassem no que se chama, por convenção útil, a esquerda portuguesa. A inscrição de Agustina no espaço da direita é-lhe conatural, senão consubstancial, por mais que custe a muitos dos seus admiradores ou revol­te outros. Talvez já seja tempo de acabar com uma certa mitologia crítica cultural que, des­de o romantismo e, sobretudo, desde a geração de 70 para cá, nos consola das nossas de­cepções históricas de esquerda, fazendo-nos crer que os “grandes nomes” do nosso panteão literário são todos dessa exaltante família... Não são. As coisas da vida – mesmo da literária – são sempre mais complexas. Também Pessoa não é dessa consoladora estirpe, evidência que, aliás, não encantará Agustina.
O que há de realmente significativo na ade­são de Agustina à candidatura do homem que não aprovou a Constituição é a sua conformi­dade, a sua sintonia íntima com o “tempo português”, tal como dez anos de experimentação democrática o foram modelando. Agustina é “sibila” de ouvido colado à terra, senhora de contas certas mais que de contos, e não costu­ma embarcar em galeras sem esperança de porto seguro. As aventuras, deixa-as para os seus aventureiros.
É um imenso cansaço que se lê na sua ade­são “genealógica” a Freitas do Amaral, aquele que, nos dias que correm, mais se assemelha ao fantasma insepulto de Salazar. Só por vergonha, muito boa e conhecida gente desen­cantada de Abril e suas pompas não embarca com Agustina na mesma barca doirada. Com Freitas, é todo um mundo que se sabe de novo ou adivinha para onde vai. Ou melhor, onde regressa. Não se trata de programa político (programa político, santo Deus), não se trata de programa social, não se trata de nada. Trata-se só, como Ulisses, de regressar a uma Ítaca pouco governável por excesso de preten­dentes, que bastará meter na ordem (estamos em democracia) para gozar de novo as delícias do lar abandonado.
Deste regresso, Agustina nunca desespe­rou. Ela conhece Ítaca e a sua longa espera. Não fosse ela a mais ilustre Penélope das nos­sas letras.


* Em Semana de Agustina, sobretudo com a realização do Colóquio Internacional Ética e Política na Obra de Agustina Bessa-Luís, hoje e amanhã na Fundação Calouste Gulbenkian em Lisboa, Ler Eduardo Lourenço recupera “A escolha de Agustina”, um texto magnífico do ensaísta que, recorde-se, foi um dos primeiros exegetas da obra da autora de Sibila. Ao contrário dos primeiros ensaios dedicados a Agustina, centrados sobretudo em livros da escritora (é o caso de “Agustina Bessa-Luís ou o neo-romantismo”, Colóquio. Revista de Artes e Letras, nº 26, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, Dezembro de 1963, pp. 43-52 e de “Desconcertante Agustina. A propósito de Os Quatro Rios”, O Tempo e o Modo, nº 22, Lisboa, Dezembro de 1964, pp. 110-117, ambos recolhidos no volume O Canto do Signo), este texto de Eduardo Lourenço foi redigido na sequência do apoio de Agustina à candidatura presidencial de Diogo Freitas do Amaral em 1985 e foi publicado em Jornal de Letras, Artes e Ideias, nº 159, 23/VI/1985, p. 21.  Não é, contudo, um mero texto de análise política, como aliás sucede quase sempre quando se trata de Eduardo Lourenço, de quem se aguarda com natural expectativa a  conferência de encerramento do Colóquio, amanhã, pelas 16h30m, podendo essa e todas outras sessões plenárias serem seguidas através de transmissão em directo no site http://www.gulbenkian.pt.