sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

José Pacheco Pereira


Ontem à noite, na Fundação de Serralves, no Porto, José Gil, Eduardo Lourenço e José Pacheco Pereira debateram o Estado das Coisas-As Coisas do Estado,  série de conferências e debates organizada por Paulo Cunha e Silva. Na impossibilidade de estar presente, Ler Eduardo Lourenço recupera hoje um texto de Pacheco Pereira escrito e publicado no seu famoso blog Abrupto na altura em que Eduardo Lourenço foi distinguido com o Prémio Pessoa, mais precisamente em 18 de Maio de 2012. Se de José Gil se conhecem vários textos (e dos quais já aqui se falou, em diversas ocasiões) sobre o autor de Heterodoxias, a verdade é que do historiador e comentador político parece haver poucas reflexões acerca da figura e da obra do ensaísta. Daí o interesse desta (que, aliás, é magnífica e tem diversos aspectos muito relevantes), que a seguir se transcreve, com a devida vénia:

José Pacheco Pereira
«Pouca gente mereceria mais o Prémio Pessoa do que Eduardo Lourenço. Devo muito a Eduardo Lourenço, a começar pelo segundo volume de Heterodoxia e pelo ensaio crítico que escreveu sobre a poesia neo-realista, os primeiros textos que li de um português que criticavam a hegemonia cultural do marxismo soviético na sua tradução nacional sem ser possível colocá-lo do lado dos defensores do regime. Hoje, livros como o Heterodoxia, parecem coisas simples, mas eram coisa para o gigantesco na altura em que foram feitos. E tão excepcionais eram que foram respondidos pelo silêncio que protege a incomodidade. O livro permanecia, como aliás muitos escritos de Lourenço, num limbo bem afastado da moda corrente, na primeira edição. Escrevi-lhe então uma carta entusiasmada sobre o livro, a que ele retribuiu gentilmente e mais tarde convidou-me para participar na apresentação da segunda edição no Centro Nacional de Cultura. E a partir daí participamos nalguns projectos comuns e temos mantido uma estima pessoal e intelectual que não posso deixar de lembrar com o meu gosto pelo seu prémio. Também eu conheço, como Vasco Graça Moura lembrou recentemente, a sua escrita quase ilegível, quase como se as suas palavras procurassem ser uma espécie de sinal vital essencial, de perturbação humana sobre a linha flat da morte. No seu discurso a receber o prémio, Lourenço fez também uma coisa cada vez mais rara: trouxe consigo esse “país estrangeiro” que é o passado, para homenagear, ao receber o Pessoa, o papel dos que ajudaram Pessoa a ser mais do que um grande poeta, um elemento simbólico dos nossos tempos portugueses do século XX. Falou de gente esquecida como Adolfo Casais Monteiro ou João Gaspar Simões, que alguns, poucos, intelectuais recordam e ainda menos lêem. E ao falar sobre eles, falou também sobre si. Falou num momento de consagração pessoal, sobre como é efémera essa glória e como nós temos uma excelente capacidade para esquecer o importante e uma excelente capacidade para perpetuar a trivialidade. As duas coisas juntas foram o seu verdadeiro discurso sobre a crise.» 
(http://abrupto.blogspot.pt/2012/05/lourenco-e-o-pessoa-pouca-gente.html)

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Tocar a rebate ou algumas "verdades" sobre o neo-realismo

Ler Eduardo Lourenço já se referiu, em diversas ocasiões, ao papel que Miguel Torga desempenhou no percurso intelectual de Eduardo Lourenço. É certo que as relações entre ambos nem sempre foram isentas de equívocos e de atribulações. Mas parece não haver dúvidas que o Autor de A Criação do Mundo (livro onde aparece um tal Edmundo Lucena de que neste blogue se falou há largos meses...) foi, por exemplo, uma personagem decisiva na edição do primeiro de volume de Heterodoxia em 1949. Nessa altura, Eduardo Lourenço era companhia muito próxima do grupo de Miguel Torga, grupo esse que, no ano imediatamente anterior, projectara um lançamento de uma revista literária mensal com o título Rebate. Nela participariam, para além de Torga e da Mulher, Andrée Crabbée Rocha, Carlos Sinde (pseudónimo de Martins de Carvalho) e Lourenço de Faria, ou seja, Eduardo Lourenço. Devido a problemas com a censura, a revista nunca chegaria a ser editada, mas o esboço da capa (que em seguida se reproduz a partir da magnífica Fotobiografia de Torga, organizada pela sua Filha, Clara Rocha) comprova como o poeta e o ensaísta mantinham uma relação muito estreita em finais da década de Quarenta.

Miguel Torga Fotobiografia (Lisboa, Dom Quixote, 2000, p. 95)
A partida de Eduardo Lourenço para o estrangeiro terá sido uma (embora não a única) das razões que motivou algum afastamento entre os dois homens. Na mesma Fotobiografia, o leitor depara com uma carta (com a data de 10 de maio de 1956) de Miguel Torga dirigida ao jovem Amigo que é, a vários títulos, digna de nota. Para além da intimidade e cumplicidade quase familiar do tom da missiva, em que Torga fala da morte do Pai, da apreensão do seu livro Sinfonia e do «cinismo dum Governo que, ad majorem gloria sua, organiza neste momento uma exposição da cultura que estimulou e perseguiu nos seus trinta anos de duração», merece registo o penúltimo parágrafo: «Gostei de ler o seu último artigo na página literária de O Comércio. Daquelas verdades é que era preciso que o neo-realismo ouvisse com  mais frequência!».
Miguel Torga Fotobiografia (Lisboa, Dom Quixote, 2000, p. 125)

De que artigo se trata? E que verdades serão essas sobre o neo-realismo? É a segunda parte de um ensaio com o título “Alguns doutrinários e críticos literários depois de Moniz Barreto” [Suplemento Cultura e Arte de O Comércio do Porto, Porto, 8/V/1956, p. 6]. No artigo, Eduardo Lourenço discorre longamente sobre a crítica literária e, de algum modo, anuncia o famoso texto sobre as relações (contra-revolucionárias?) entre o presencismo e a modernidade de Orpheu. E termina, de facto, com algumas frases dedicadas ao neo-realismo, embora talvez seja excessivo ler nelas o tom de reprimenda sugerido pelo comentário de Torga na carta. Se não, veja-se:
«O neo-realismo dando ao literário um lugar subordinado na preocupação humana (ou antes subordinando o valor literário a outra coisa precisa não-literária) parece a muitos ter diminuído o interesse pela crítica literária. É talvez o contrário que é exacto. Pondo em causa a literatura, o neo-realismo contribui como poucas teorias na história humana para mostrar o carácter irredutível, problemático, enigmático, desse produto único dos homens que é a Literatura e a Arte em geral. Em face desse neo-realismo (que em Portugal e no mundo não tem sido nesse sector senão uma caricatura desastrada das indicações bem precisas do autor da Contribuição à Critica de Economia Política) existe hoje uma jovem crítica para quem o fenómeno literário se apresenta como expressão humana irredutível, tal como para os presencistas, mas ao mesmo tempo intrinsecamente mortal como o homem que a cria e transporta tanto como é criado e transportado por ela. Uma tal crítica, nascida da consciência das dificuldades e das conquistas da crítica literária contemporânea, da qual o “presencismo” e o “neo-realismo” foram entre nós as atitudes mais eficazes, poderá ocupar o primeiro lugar do panorama crítico nacional. Para isso deverá resistir à tentação da objectividade ilusória, ao repouso das explicações metafísicas que não tenham em conta o carácter intrinsecamente precário do universo literário, mundo de estrelas que não são fixas como pensava o “presencista” Ch. du Bos, mas cadentes como a história dos homens o dos seus gostos.»
É possível entrever nesta tese de Eduardo Lourenço grande parte do que será redigido mais tarde acerca do neo-realismo (seria interessante confrontar este parágrafo com o prefácio do livro Sentido e Forma da Poesia Neo-Nealista que integrará o segundo volume das Obras Completas). No entanto, se o ensaísta parece demarcar-se dos seus companheiros da Vértice, a verdade é que também não parece interessado em tocar a rebate com o grupo de Torga. Também por este diálogo e este desencontro com o Autor de Bichos se vai começando a desenhar o percurso heterodoxo de Eduardo Lourenço.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Escritor de um Poema Só

Acerca de Eduardo Lourenço e dos Poetas, Carlos Mendes de Sousa fala de uma «projecção desejante», talvez traduzida numa «tensão – entre o recuo e a paixão – que pensa (vive) a poesia dos outros» (“Eduardo Lourenço: a cidade, o poema”, Relâmpago, nº 22, 2008, p. 93). Daí a recorrente confissão, onde o humor não oculta ainda assim uma verdade mais profunda, do ensaísta sobre o seu sonho de ser poeta. No entanto, é bom lembrar que um dos primeiros textos publicados por Eduardo Lourenço foi, precisamente, um poema. De facto, no número terceiro da revista Vértice, publicado em Fevereiro de 1944 (tinha o Autor vinte e um anos!), o leitor encontra na página 9 um breve poema com o título “Aceitação”. Não será com certeza por causa destas quase adolescentes dez linhas que Eduardo Lourenço inscreve o seu nome entre as páginas mais importantes da cultura portuguesa contemporânea. No entanto, “Aceitação”, tal como outros textos do período a que Eduardo Lourenço chama “Tempo da Vértice”, constitui decerto um dos múltiplos motivos de interesse de Sentido e a Forma da Poesia Neo-Realista e outros ensaios, o segundo volume das Obras Completas que, dentro de semanas chegará às livrarias. Nesse volume, que conta com um texto introdutório de António Pedro Pita com o título “Inventar o Sentido do Tempo – Eduardo Lourenço e o «neo-realismo» como problema”, poderá o leitor regressar a uma cidade e tempo mágicos, a Coimbra dos anos Quarenta, e (re-)descobrir as origens daquele que é também um Escritor de um Poema Só.

“O que eu queria mesmo era voar”, entrevista por José Carlos de Vasconcelos, Visão, Lisboa, 22/V/2003, p.151.

Foto de Ler Eduardo Lourenço





quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Não apenas mais uma entrevista...ou onde se fala do Brasil, da Itália e de Patrice Chéreau!



Acaba de aparecer nos escaparates das livrarias mais um livro de Eduardo Lourenço. Ou talvez melhor: um livro com Eduardo Lourenço. Na verdade, trata-se de uma extensa entrevista que José Jorge Letria realizou com o ensaísta a 20 de Fevereiro de 2011, ou seja, um dia antes de este ser distinguido com o Prémio Vida e Carreira pela Sociedade Portuguesa de Autores, instituição de que Letria é o Presidente. Compreende-se por isso o tom (excessivamente?) laudatório do livro que constitui, antes de mais, uma homenagem a Eduardo Lourenço. A própria entrevista, que efectua uma revisão de alguns dos acontecimentos mais relevantes da vida do homenageado e de alguns dos temas mais importantes do seu pensamento, constitui uma muito interessante introdução à figura e à obra de Eduardo Lourenço, pelo que o leitor, por assim dizer, não-iniciado encontrará aqui uma boa ferramenta de trabalho. Para quem conhece mais ou menos bem Eduardo Lourenço, é possível que não haja em A História é a Ficção Suprema (belo e bastante lourenceano, o título, aliás!) muitas novidades. Ainda assim, Ler Eduardo Lourenço respiga duas passagens que talvez mereçam destaque especial. A primeira, narrada por José Jorge Letria, e que se reporta à Gala da Sociedade Portuguesa de Autores, realizada no Centro Cultural de Belém, e que reza assim:
«Guardei na memória um episódio dessa noite que definiu a personalidade de Eduardo Lourenço. Sendo o premiado internacional da gala o encenador e realizador francês Patrice Chéreau, recentemente falecido aos 68 anos, Eduardo Lourenço fez questão de o acompanhar nos bastidores e de traduzir para francês o que estava a passar-se no palco, para que o artista, realizador de filmes como A Rainha Margot, não se sentisse marginalizado e num ambiente estranho. O velho professor, durante mais de duas horas, generosa e solidariamente, serviu de cicerone e de intérprete a Patrice Chéreau, que muito lhe agradeceu a gentileza, embora desconhecesse a dimensão e a importância desse companheiro de circunstância. No final percebeu e ficou sensibilizado. É assim Eduardo Lourenço (p. 20)».
Patrice Chéreau (1944-2013)


A segunda nota que aqui se assinala tem a ver com uma declaração de Eduardo Lourenço acerca da sua tão importante como breve passagem pelo Brasil. E sobretudo como esse seu ano brasileiro lhe suscitou o desejo de conhecer aquilo que, só então, teve a plena consciência de que não conhecia verdadeiramente, ou seja, a Europa.
«Estive lá [na Bahia], foi uma experiência interessantíssima, mas eu não estava preparado para enfrentar esse país que foi filho da nossa História mas que é outra coisa. É outro planeta. E eu já ia muito marcado por este europeísmo quase orgânico, e depois, quando estava no Brasil, a única coisa em que eu pensava era que nunca tinha ido a Itália, estando ali a 500 quilómetros, em Montpellier. Por isso, a primeira coisa que fiz, assim quando regressei do Brasil, foi ir direito a Itália, direito a Veneza. Foi um dos grandes momentos de encontro com a velha Europa, com aquilo que ela tem de mais extraordinário e mais sublime» (p. 30).



quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Sobre a pintura de Vieira da Silva*

Vieira da Silva, Biblioteca em Fogo, óleo sobre tela, 1974
Poucas obras impõem como a de Vieira da Silva a evidência dessa temporalidade criadora e iluminante de uns quadros por outros e cada um pelo conjunto deles. Há pintores de múltipla pintura. Dir-se-á que coabitam neles vários pintores, ou antes, várias pinturas. O exemplo de Picasso acode logo mas é um mau exemplo. As “fases” ou “maneiras” de Picasso procedem, em princípio, dele mesmo ou ele as integra com um génio e uma desenvoltura únicas num mundo seu. Pintores de múltipla pintura são aqueles cujas diversas “maneiras” visivelmente têm neles uma motivação acidental e exterior. São inúmeros. São a grande coorte dos seguidores em perpétuo atraso mas hábeis em fazer crer (ou crendo eles mesmo) que as “mudanças” nasceram por intrínseca necessidade. Vieira da Silva é o oposto de tais pintores. Ela aparece, na luz desta retrospectiva, como a pintora de um quadro único, mas quadro conquistado dia a dia num combate dos seus olhos e do seu espírito, com a aparência jamais domesticada da luz e suas metamorfoses sobre a face dos céus, da terra, da água e das cidades. A pintura de Vieira da Silva é um “fazer” e um “desfazer”, um tecer e destecer perpétuos, como se cumprisse um voto de incoercível fidelidade, de devoção a um só senhor, essa realidade espacial, visível, tão fabulosamente real e visível que para a aprisionar nas malhas de uma tela é necessário tecê-la às avessas, compor a presença com a ausência, o visível com o invisível, fiar o dia na estriga da noite. Daí que tal pintura pareça a muitos como marcada por um halo de irrealidade e mesmo de fantástico ou em todo o caso de uma evanescência próxima de uma e outro. Mas esse é possivelmente o preço que a fundura de certos combates com a aparência, a fim de a salvar, tem pago sempre. Debussy foi um bom exemplo. A musical pintura de Vieira da Silva, outro. Irrealista e fantástica – não serviu ela para a evocação dos mundos imaginários da ficção científica? é a pintura de Vieira da Silva apenas aos olhos dos que não vêem a quotidiana aparência que nela é mais do que simples ponto de partida, por ser obsessão ou, se se prefere, inesgotável fonte de encantamento. A sua necessidade de visível, e mesmo de “tocável”, é tão imperiosa que ela mesma, antecipando a vivência futura dos espectadores, remete as suas imateriais e quase fantásticas tapeçarias para uma quotidianidade que as não esgota, mas à qual esse infalível baptismo confere uma realidade de arquétipo. Vieira da Silva parece ter horror do “inominado” e do “não-situado” e por isso baptiza a posteriori estruturas cuja fascinação não precisava de etiqueta. Tão próxima, quando superficialmente olhada, de certos aspectos da pintura de Klee, é uma démarche oposta que os quadros de Vieira da Silva nos mostram. A Biblioteca de Vieira da Silva não é fantástica, no sentido em que o seria um quadro com semelhante título de Klee, cuja pintura é realmente a mais fantástica que se conhece, mas apenas recriadora – em nós – do “fantástico” de uma Biblioteca, entre outros possíveis, que afinal é pouca coisa comparado à fascinação pura do espelhismo ambíguo e múltiplo do quadro, em suma, à pura música espacial que o constitui. O que ainda se podia crer em face de um só quadro torna-se insustentável diante de uma série deles. Vieira da Silva nada tem de comum com a pintura “fantástica” ou do “imaginário”. Num sentido, que não tem, sob a nossa caneta, nada de pejorativo, Vieira da Silva é um pintor sem imaginação. Entendamo-nos: um pintor não criador de imagens, um pintor cuja imaginação se exerce sobre a própria matéria sensível. Não é esta, por excelência, a vocação pictural suprema, a de um Velasquez, de um Manet, de um Vuillard? Nos seus últimos quadros rondam, quase que com a mesma força, a tentação do lirismo abstracto puro e a sombra da abstracção descarnada e violenta, a meio caminho entre Poliakoff e De Staël, mas sente-se que o pintor está à beira do abismo e como que desamparado. De resto seria um abandono da sua pintura tal como a retrospectiva a manifesta. A preocupação única de Vieira da Silva supõe distância entre o gesto do pintor ou o seu resultado e a matéria dele, esse espaço que a sua pintura fará estilhaçar do interior, mas mantendo-o. A pintura de Vieira da Silva é assim, enquanto intenção, tradicional. O quadro supõe algo fora dele, embora, uma vez existente, seja ele mesmo uma realidade subsistente, autónoma, um duplo e até mais do que isso, uma virtualidade de espaços mais rica que o espaço real. É neste pulsar elementar da sua pintura como gesto e visão amorosa desenraizavelmente prisioneiros do visível, ou para ele nos reenviando, que nós seríamos tentados a discernir o carácter lusíada desta “portuguesa de Paris”. O inegável realismo lírico que se ultrapassa em lirismo cósmico parece-nos mais revelador e mais profundamente nosso do que a simples verificação do gosto de Vieira da Silva pelas cores suaves, a paixão pelo branco ou a obsessão temática do “quadradinho-azulejo” de lisboeta memória. Pintura ao rés-dos-olhos e ao rés-das-mãos, quase artesanal e paciente modelar da luz e seus jogos, mas mediada por um espírito perfeitamente ao par da situação pictural e das exigências que a atravessam nos anos decisivos da sua formação. Vieira da Silva não é uma “primitiva”, mas uma muito consciente pintora travando por sua conta e em limites precisos um geral combate da pintura consigo mesmo que nela se vencerá sem catástrofe, mas não sem inquietude. As suas arquitecturas imaginárias – e mais imateriais não há nenhumas na pintura contemporânea – são sempre encantamento do real, mas de um real colhido ao nível da sua estrutura mais ténue, no limite em que a visão pende para a ilusão ou a ilusão mesma se reestrutura em visão. Esta referência “ao real” é tanto mais significativa quanto é certo que, objectivamente considerada, a maioria dessa pintura já a nada reenvia senão a si mesma e é concebida mesmo como um “fazer” autónomo, uma aventura sem outra dimensão, nem necessidade, que a de se constituir como realidade pictural. Mas não há contradição alguma entre esta “abstracção” estrutural e o não-consentimento ou o abandono de toda a significação capaz de estabelecer o quadro nessa definitiva abstracção que a pintura de Vieira da Silva até hoje recusou. O tema único do espaço basta para que a pintura de Vieira da Silva permaneça no horizonte “realista”. Mas esse tema igualmente basta para explicar a ambiguidade e a fascinação dessa pintura que é jogo com o que a experiência sensível oferece aos homens de mais presente (pois nele tudo está) e de mais ausente (ele em nada está). Se é exacto que a estrutura mais autêntica da nossa sensibilidade é a nostalgia – amor celeste a um visível sempre corroído pelo tempo, um tocar sem tocar, uma posse despossuída, como a poesia de Camões, Pascoaes ou Pessoa no-lo mostram – pintura alguma nos exprimiu jamais melhor do que esta, sob aparências cosmopolitas. Nela se dá na verdade um mundo cuja presença maravilhante nos é sensível pela alusão e pela ausência. Se a pura memória das coisas pintasse – e ela só – nós teríamos estes espaços que são espelho de outros espaços e todos em conjunto como que a sensível ausência de um mágico e fabuloso Espaço, porventura o nosso, mas que está diante de nós como um paraíso fulgurante e impercorrível. O “fantástico” da pintura de Maria Helena Vieira da Silva situa-se, nasce, no interior desta nostalgia visual que misteriosamente repercute, símbolo ou paráfrase, a nostalgia do espírito, próximo e separado de si mesmo. Se jamais o Espaço foi fonte de Poesia aqui o foi. A história que conta o inteiro percurso da pintura de Vieira da Silva é a de uma luta e de uma libertação. Luta e libertação de antemão perdidas, pois é do Espaço que se trata, irredutível presença, mas ganha, tanto quanto o pode ser, na sua pintura. O lugar de todas as viagens, aquele de que Kant só concebia o percurso em linha recta, na pintura de Vieira da Silva o viajamos em todos os sentidos. Basta sentarmo-nos diante de um dos seus quadros e deixar esse Espaço meter-nos dentro dele.
Arpad Szenes e Maria Helena Vieira da Silva (imagem FAVS) 

*A correspondência, sobretudo gráfica e alguma inédita, trocada entre Maria Helena Vieira da Silva e o marido, Arpad Szenes, vai ser apresentada numa exposição que é inaugurada amanhã, dia 6 de Fevereiro, pelas 18h30, em Lisboa. A exposição intitula-se Escrita íntima e reúne, em torno da correspondência trocada por Arpad e Maria Helena, uma selecção de obras de ambos.Na maioria são desenhos, testemunhos e retratos um do outro e da sua intimidade, segundo um texto da Fundação sobre esta mostra de obras pouco conhecidas, algumas inéditas.A exposição “Escrita Íntima” fica patente na Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva (FASVS) até 19 de Abril. Na sessão com que abre a exposição participarão, entre outros, a vereadora da Cultura da Câmara Municipal de Lisboa, Catarina Vaz Pinto e Eduardo Lourenço. Antecipando o evento, Ler Eduardo Lourenço recupera um excerto do artigo “O itinerário de Vieira da Silva ou da poesia como espaço. A propósito da exposição retrospectiva de Grenoble 1964”, O Tempo e o Modo, nº 24, Lisboa, Fevereiro de 1965, pp. 199-209, mais tarde reimpresso no livro O Espelho Imaginário, Pintura, anti-pintura, não-pintura, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1981.