quarta-feira, 24 de julho de 2013

Remodelações governamentais na Cultura?


Eduardo Lourenço e Luís Machado no Martinho da Arcada (30/IX/2009)
 Em tempo de mudanças governamentais, seja lá o que tal conceito possa significar (atendendo ao que os últimos acontecimentos políticos têm feito para o enriquecimento semântico irrevogável? da língua portuguesa, nada hoje parece seguro), interessa recuperar uma quase nomeação de Eduardo Lourenço para a pasta governamental da Cultura. Ou melhor, duas. É o próprio quem se refere a esses dois episódios durante uma curiosa conversa mantida com Luís Machado no café lisboeta Martinho da Arcada, realizada em 30 de Setembro de 2009, transposta para capítulo de livro no ano seguinte. À pergunta  de Luís Machado sobre se teria mesmo sido convidado para ministro da Cultura, responde o ensaísta nos seguintes termos:

Artur Portela Filho, director do...
 


«Fui, duas vezes. Uma vez, “virtualmente”, nomearam-me ministro sem me dizer nada, veio num jornal. Nessa época, como sabem, saía um jornal dirigido pelo meu amigo Artur Portela que se chamava Jornal Novo. Nesse jornal foi publicada uma lista do novo Governo, que era tutelada pelo famoso Grupo dos Nove. Vinha então nessa lista: “Ministro da Cultura fulano”. Naquela altura estava eu em férias, e a minha mulher chegou com um telegrama na mão e disse-me assim: “Mon cher, te voilà ministre”. Eu, atónito, indaguei: “Mas que é isso?” Ela respondeu: “Parece que és ministro.” Mas com o ar mais francês possível. Do que se tratava? De gente do teatro, do cinema, que me mandava um telegrama a felicitar-me por eu ter sido nomeado ministro. Tudo aquilo só existiu num jornal, não teve nenhuma espécie de resultado. Quando fui convidado, foi mais tarde, pelo major Vítor Alves. Os meus problemas eram os mesmos de sempre. Eu não seria nunca a pessoa certa para o local certo. Não podia aceitar uma coisa dessas. Não fui feito para mandar em ninguém. Talvez porque não gosto que mandem em mim. Veleidades de fazer qualquer coisa pela cultura portuguesa, noutro sentido, sim, mas não ter esse tipo de responsabilidades. Não tenho nenhuma apetência de ordem política» (Luís MACHADO, Rostos da Portugalidade com Mário Soares, Júlio Pomar, Eduardo Lourenço, Manoel de Oliveira, Carlos do Carmo, Ruy de Carvalho, Lisboa, Vega, 2010, pp. 104-105).
Major Vitor Alves

Com a descontracção de quem se prepara para ir a banhos (com a firme promessa de regressar em Setembro), Ler Eduardo Lourenço confessa que  lhe agrada muito a nenhuma apetência do autor de O Labirinto da Saudade para funções governativas. Quase tanto como lhe desagrada a apetência em excesso por pastas governativas, manifestada alguns dos políticos da nossa praça. Boas Férias!

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Escolher Outro Nome ou Ler Gastão Cruz

cansa-nos o verão (Gastão Cruz, Outro Nome, 1965)

E se escolher fosse outro nome para ler? Leitor de poesia como poucos, Eduardo Lourenço escolhe, como é óbvio, os poemas sobre os quais escreve. Costuma dizer que na sua vida há poucas escolhas. Pelo menos em duas ocasiões, curiosamente no mesmo ano, essa escolha assumiu a forma de livro. Em 2006, a revista Visão e o Jornal de Letras, Artes e Ideias pediram ao ensaísta que organizasse uma Antologia Poética de Fernando Pessoa. Trata-se de uma edição importante a vários títulos, desde logo porque ajuda a perceber alguns aspectos da exegese que o ensaísta realiza do universo pessoano. Quase ao mesmo tempo, o jornal Público organizou uma colecção a que chamou os poemas da minha vida, pedindo a colaboração de vários nomes, alguns deles bastante inesperados, como é o caso de Jerónimo de Sousa, António Ramalho Eanes ou Miguel Cadilhe. Menos surpreendente terá sido o convite a nomes Urbano Tavares Rodrigues, Maria Alzira Seixo, Vasco Graça Moura ou até Maria Barroso. Coube a Eduardo Lourenço a organização do número vinte e um de os poemas da minha vida. Que poemas e poetas foram incluídos nos poemas da vida de Eduardo Lourenço? Para além do verso quase mítico «O filho do Zeferino foi a casa dos filhos da mãe do Zebedeu» que o jovem aluno da escola primária de São Pedro do Rio Seco descobriu no manual de leitura e de que Eduardo Lourenço fala no prefácio da antologia (cf.http://leduardolourenco.blogspot.pt/2011/06/nao-sei-que-poema-entrou-como-um-ladrao.html), são convocados nomes como Petrarca (traduzido por Vasco Graça Moura), Luís de Camões, S. João da Cruz (por Jorge de Sena), Novalis (por Fiama Hasse Pais Brandão), Baudelaire (por Jorge de Sena e por Fernando Pinto do Amaral), Antero de Quental, Cesário Verde, Camilo Pessanha, António Machado (por José Bento), Teixeira de Pascoaes, Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, José Régio, Miguel Torga, Adolfo Casais Monteiro, Jorge de Sena, Sophia de Mello Breyner Andresen, Carlos de Oliveira, Eugénio de Andrade, Mário Cesariny, Alexandre O'Neill, António Ramos Rosa, António Osório, Ruy Belo, Pedro Tamen, Armando Silva Carvalho, Gastão Cruz, Vasco Graça Moura, Al Berto, Nuno Júdice e Paulo Teixeira. 
No limite, cada poeta e talvez cada poema escolhido justificaria uma análise em pormenor. Por exemplo, é curioso como, tendo reunido quinze textos de Fernando Pessoa para os poemas da minha vida, o primeiro dessa lista não conste, por sua vez, da Antologia Poética de Fernando Pessoa. Haverá razões para aquilo que, em rigor, não é necessariamente uma incoerência? Eis um assunto que talvez mereça a pena ser estudado.
Um outro caso é Gastão Cruz, poeta que aparece com duas canções em poemas da vida de Eduardo Lourenço. Trata-se da primeira e da última (a décima) das dez que compõem Outro Nome. Uma pergunta surge: porquê dois textos de um mesmo livro, tratando-se a obra deste poeta um conjunto de livros que, já em 2006, excedia os vinte títulos? Claro que Outro Nome não é um livro qualquer de Gastão Cruz, supondo que algum deles o seja. Mas é um livro para o qual, no caso de poder ser explicado (e sobre esta possibilidade as dúvidas são, pelo menos, infinitas), estas palavras, recentes e iluminadoras, de Pedro Eiras deveriam, com certeza, ser aproveitadas: «(…) Outro Nome é denso. As palavras são revistas em incansáveis jogos de permutas: tornam-se outras, sendo as mesmas (efeito perturbador: o leitor começar a ler, nas palavras presentes, a repetição das palavras repetidas; fogo, areias, vidraças, lisboa, nome, canção são palavras que se tornam esmagadoras, pela memória que obrigam o leitor a gerir: pois o leitor ouve, sob as palavras, os ecos das palavras já lidas). Multiplicidade e unidade: mesmo as canções, dez como em Camões, são só uma, se lembrarmos o subtítulo original “Poema em dez canções” (…). Um único, extenso, poema. Únicas, extensas, palavras» (Pedro Eiras, “A lição do rigor sobre Outro Nome”, Luis Maffei; Pedro Eiras, A Vida Repercutida – Uma Leitura da Poesia de Gastão Cruz, Lisboa, Esfera do Caos, 2012, p. 46).
A esta enumeração de únicas e extensas palavras furtou-se uma que joga papel decisivo na canção décima: neve. Ou porventura dever-se-ia dizer: la neige de René Char. É que a epígrafe do poeta francês, tantas vezes citado por Eduardo Lourenço noutras ocasiões, faz parte integral da canção que encerra Outro Nome. Desde a edição original, saída em 1965. Nem sempre será assim, no entanto. Por exemplo, em Poesia 1961-1981 a epígrafe não aparece, como se tivesse sido enterrada no “fogo da paz falsa” das areias do verão. Na mais recente versão conhecida, inserida em Os Poemas (Assírio & Alvim, 2009, p. 85), o leitor encontra-a de novo. Ora, também da leitura que Eduardo Lourenço faz desta belíssima canção de Gastão Cruz, l’inexorable neige de Char não foi escolhida. Ou, se escolher for outro nome para ler, poder-se-á perguntar: não foi a neve lida por Eduardo Lourenço?

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Philosophe de la Provence


O leitor desprevenido ficará com certeza intrigado com uma breve alusão feita por Eduardo Lourenço em Vida Partilhada, o seu último livro, saído recentemente com a chancela da Âncora Editora. De facto, no capítulo designado “Eu ensaísta me confesso”, Eduardo Lourenço, discorrendo sobre as diferenças entre a filosofia e o ensaio, deixa escapar uma pequena confissão. «Há um autor espanhol, da primeira metade do século XX, chamado Azori, que tem um livro delicioso e sempre invejei muito o título desse livrinho chamado El pequeño filósofo. À falta de ser um grande filósofo posso consentir ser apelido de “el pequeño filósofo”, como dizia um crítico jovem piedoso, implacável, há uns anos atrás, que eu era um filósofo de província. Aceito a designação ... sou gostosamente, um filósofo de província, outra versão do que é um ensaísta» (p. 82).
Deixando para outra altura a referência a Azorin, importa centrar a atenção no aparentemente enigmático “crítico jovem piedoso, implacável”. Convém dizer, entretanto, que o texto “Eu ensaísta me confesso” é a transcrição de uma intervenção oral, realizada por Eduardo Lourenço na Guarda, no dia 23 de Maio de 2008. Ler Eduardo Lourenço desconhece se essa transcrição foi objecto de uma prévia revisão por parte do Autor, quer para a edição de Vida Partilhada, quer para uma primeira publicação do texto, ocorrida logo em 2008, na revista Iberografias (Centro de Estudos Ibéricos, nº 4, Guarda, pp. 50-52). Mas, ao mesmo tempo, Ler Eduardo Lourenço tem de admitir que estava nessa mesma tarde no Salão Nobre da Câmara Municipal da Guarda e que se recorda perfeitamente de ter associado a inesperada alusão a um jovem crítico e a um texto muito concretos. Sem efectuar uma confrontação com o registo gravado da comunicação oral, não é possível apresentar certezas absolutas, mas Ler Eduardo Lourenço julga mesmo que dos três adjectivos usados para caracterizar o crítico, é possível que tenha havido um lapso na audição e/ou transcrição de um deles. Terá dito Eduardo Lourenço piedoso ou impiedoso? A dúvida talvez venha a subsistir ad eternum. A proverbial ironia de Eduardo Lourenço autoriza, de resto, qualquer uma das duas hipóteses. O mesmo já não sucede em relação aos adjectivos jovem e implacável, clara e distintamente ouvidos pelo menos por um dos presentes.
Mas, impiedoso ou não, de que jovem e implacável crítico se trata? Nesta como em muitas outras ocasiões, é difícil chegar a conclusões categóricas e definitivas. É preciso reconhecer que uma das dificuldades que a escrita de Eduardo Lourenço suscita tem a ver com o facto de o ensaísta muitas vezes não ser absolutamente claro quanto às fontes de que se serve. Mesmo assim, Ler Eduardo Lourenço aceita correr o risco de defender a tese de que o texto que está na origem da alusão feita por Eduardo Lourenço é o artigo que, em 25 de Janeiro de 2002, João Pereira Coutinho escreveu nas páginas do semanário O Independente: trata-se da crónica “Animais, porteiros & provocadores” e que em baixo se reproduz.






Vida Independente era uma espécie de diário que o jovem cronista mantinha nas páginas do jornal, concebido por Miguel Esteves Cardoso e Paulo Portas, e que talvez vivesse nessa época um período de algum declínio. O que diz, nesse dia, João Pereira Coutinho? Enquanto jantava com um colega, o jovem crítico terá ficado a saber que Eduardo Lourenço tinha sido escolhido por uma universidade portuguesa para receber um doutoramento honoris causa. Pouco importa agora saber de que instituição se tratava (o cronista não o diz e os dois doutoramentos honoris causa atribuídos em Portugal a Eduardo Lourenço foram concedidos em 1996 e 1998!) e a que outra personalidade essa distinção terá supostamente sido recusada. Interessa, isso sim, atentar na reacção do jovem implacável: «Ouvi esta história encantadora e nem o vinho conseguiu aliviar o pasmo que sinto. Não vou comentar as virtudes filosóficas do pensador Lourenço, um provinciano que ganhou estatuto de iluminado entre os selvagens». E mais à frente remata: «Eduardo Lourenço (...) publicou meia dúzia de banalidades» (O Independente, 25/I/2002, p. 28).




Será excessiva falta de rigor insinuar que a notoriedade de João Pereira Coutinho não conhece hoje, algo perdido nas páginas do Correio da Manhã, os seus melhores dias? É possível, mas a verdade é que, em 2002, o jovem autor era já um escritor premiado, pois Jaime e Outros Bichos (Lisboa, Difel, 1997) recebera, seis anos antes, o Prémio Nacional de Literatura Juvenil Ferreira de Castro. Consagração precoce? Nem por isso, especialmente se se atender ao que vem escrito na bandana desse mesmo Jaime sobre o contista, na altura quase a deixar de ser teenager: «Jornalista desde os dezasseis anos. acumulou até aos dezanove duas centenas de crónicas, dezenas de reportagens, entrevistas, um livro e dois processos por abuso de liberdade de imprensa». Reconheça-se que se trata de um currículo pelo menos intimidante.
Posteriormente, O Independente recolheu numerosas crónicas de João Pereira Coutinho no volume, duplamente prefaciado por Miguel Esteves Cardoso e Alberto Gonçalves, Vida Independente 1998-2003 (Lisboa, 2004), mas nele não incluiu “Animais, porteiros & provocadores”. O visitante deste blog poderá, sem dúvida, interrogar-se se João Pereira Coutinho é mesmo o crítico jovem piedoso (ou impedioso?) e implacável de que fala Eduardo Lourenço em Vida Partilhada. A interrogação é legítima, sobretudo porque o autor de Heterodoxias não reproduz ipsis verbis a violenta frase do cronista em O Independente. Será uma imprecisão decorrente do facto de se tratar de uma citação de memória num breve improviso oral? Ou, pelo contrário, havia ainda um outro adversário, tão implacável como desconhecido, do nosso philosophe de la Provence?

sexta-feira, 12 de julho de 2013

Filmar o pensamento!


A Poética do Pensamento de Eduardo Lourenço (2003) é um belo documentário dedicado à vida e ao pensamento do ensaísta. Tratando-se de uma produção, de autoria de Ana Paula Antunes e com a realização de Abel Cardoso, já com dez anos de idade, nem por isso perdeu frescura e interesse. Com uma articulação feliz entre o registo fotobiográfico e um muito curioso conjunto de depoimentos do próprio de Eduardo Lourenço, Maria Manuel Baptista, José Gil (com intervenções notáveis de rigor e clareza), Onésimo Teotónio Almeida (deliciosa, a estória de um frustrado telefonema, narrada aos 4m 39s) e Miguel Real. Desses depoimentos, talvez suscitem especial curiosidade as confissões de Eduardo Lourenço acerca da sua experiência não muito feliz no Colégio Militar que terá incentivado, por assim dizer, a sua ânsia de liberdade e a declaração, praticamente no fim do filme, sobre a quase decepção de não ter cumprido o sonho do Pai que teria gostado que tivesse seguido a carreira médica.
Ler Eduardo Lourenço contactou o realizador A Poética do Pensamento e Abel Cardoso amavelmente recordou esta experiência, dizendo: «guardo a tremenda impressão que me ficou do labor rigoroso de Eduardo Lourenço e o brilho do seu pensamento». Vendo hoje o documentário, é lícito concluir que o realizador conseguiu traduzir filmicamente essa tremenda impressão. Soube, em suma, filmar o pensamento!

Três Novos Títulos da Colecção Iberografias


No passado dia 6 de Junho, na Biblioteca Municipal Eduardo Lourenço, em sessão que integrava o programa do Colóquio Portugal e o seu Destino, uma organização do Centro de Estudos Ibéricos por ocasião do 90º aniversário de Eduardo Lourenço, foram lançados três novos títulos da colecção Iberografias, uma série que, numa primeira fase esteve associada à antiga casa portuense Campo das Letras (entretanto extinta), mas que nos últimos anos ganhou um novo fôlego com a ajuda de uma nova parceria estabelecida com a Âncora Editora. Em que consistem os três livros apresentados, que estão a partir de agora disponíveis nas principais livrarias de todo o país?

Vida Partilhada, Eduardo Lourenço, o CEI e a Cooperação Cultural (nº 21 da colecção) é um conjunto de textos dispersos (alguns deles inéditos) da autoria de Eduardo Lourenço que têm como elemento comum a cidade da Guarda e o Centro de Estudos Ibéricos. A dimensão circunstancial destes escritos não lhes retira importância, pois, bem vistas as coisas, não é, como o próprio Eduardo Lourenço tantas vezes o refere, toda a obra do ensaísta fruto de uma certa contingência?


Falar Sempre de Outra Coisa. Ensaios sobre Eduardo Lourenço (nº 22), de João Tiago Lima, e Metafísica da Revolução. Poética e Política no Ensaísmo de Eduardo Lourenço (nº 23), de Teresa Filipe são dois novos contributos para a cada vez mais extensa bibliografia sobre a obra do ensaísta.
Na foto que a seguir se reproduz é possível ver, da esquerda para a direita,  Teresa Filipe, João Tiago Lima (que falou sobre Metafísica da Revolução), António Pedro Pita (a quem coube “lançar Vida Partilhada), Eduardo Lourenço, Fernando Catroga (apresentador de Falar Sempre de Outra Coisa) e António Baptista Lopes, da Âncora Editora.




quarta-feira, 10 de julho de 2013

Augusto Abelaira: dez anos agora

Augusto Abelaira (Ançã, 1926 - Lisboa, 2003)





 Da ubiquidade*



Há 20 anos – ou até há dez – a morte de autor de A Cidade das Flores, referência primaveril dos nossos anos de silêncio, teria suscitado, além da ritual tristeza, uma forte emoção cultural. Merecida. Parece não ter sido o caso. Como se ninguém – nem o “povo de esquerda”, a que ele emprestou durante tantos anos a sua atenção crítica e paixão ética – não soubesse já muito bem quem “nos” morria com Augusto Abelaira. É verdade que o tempo da sua disparição, o do Portugal que o vê morrer sem adivinhar quem lhe morre, em quase nada se parece com o país cinzento e tutelado onde a sua obra surgiu. E de que foi uma espécie de cadinho onde todas as perplexidades de uma situação histórica, ideológica, societal, condenada a viver sob o modo críptico da alusão, da virtualidade, eram uma saída alegórica por contra de um futuro sem saída. Todas as saídas possíveis do que não tinha saída – e não apenas em termos de politica e de ideologia – encontraram na obra de Augusto Abelaira a sua expressão mais refinada e sinuosa. Se alguém foi, entre nós, o romancista desse tal “fascismo que nunca existiu” e nos serviu da vida real que nos condicionava os pensamentos e a respiração, foi o autor de Sem Tecto Entre Ruínas. Como respirar quando a atmosfera era tão rarefeita como nos parecia então? Imaginando cenários para tempos futuros, duvidando deles, oferecendo-se quase ludicamente ao labirinto de uma realidade que era mais ficcional do que todas as ficções. Iluminista e racionalista por convicção, céptico por temperamento, Augusto Abelaira fez da ubiquidade impossível o seu terreno de eleição. Nada era o que parecia. Tudo era ou tudo podia ser outra coisa. O inaceitável e o desejável, o mundo que o sufocava e o mundo que o libertaria se fosse como o sonhava. Não era um fanático, era só um apaixonado que mesmo ao mais consolador dos sonhos – e nenhum maior do que a paixão – não podia entregar o seu apetite quase patológico de lucidez. Um século antes, teria sido um fiel adepto, se a expressão não fosse contraditória, de uma filosofia então célebre, a do “como se...”, jamais o amante das certezas que em si repousam ou sobre si se fecham. Profundamente “hamletiano”, a tragédia estava-lhe vedada, era a sua face sthendaliana, o seu lado Fabrizio del Dongo conservando-se paradoxalmente distraído e disponível no meio do Waterloo da vida. Disse-me um dia que a única questão que o interessava era a do Tempo. Não a insolúvel ou vã questão “metafísica” do Tempo, apenas a das visagens e miragens que ele assume, a expressão musical dele, como no seu muito amado Mozart. O Mozart de Cosi Fan Tutte e de Dom João. Mas também de todos os Dons Joões. Do de Lenau, sobretudo, velado de além túmulo pelas suas criaturas amadas, traídas mas nunca realmente abandonadas a que a sua ficção consagrou a única vigília sem cansaço nem remorso. 


* O texto de Eduardo Lourenço que aqui se reproduz foi publicado em Jornal de Letras, Artes e Ideias, Lisboa, 9/VII/2003, p. 11. Foi redigido em Vence, a 7 de Julho de 2003, ou seja, poucos dias depois do falecimento de  Augusto Abelaira (Ançã, 18/III/1926 - Lisboa, 4/VII/2003). Infelizmente, dez anos após a morte do autor de romances tão marcantes como A Cidade das Flores, Bolor, Sem Tecto Entre Ruínas ou Outrora, Agora, a sua obra parece que continua a não suscitar o interesse que indiscutivelmente justifica. Professor de Filosofia, Abelaira foi também um notável cronista. Na esperança que a sua obra não seja apenas escrita na água, Ler Eduardo Lourenço recorda aqui a sentida homenagem do ensaísta ao Amigo e ao Escritor.

quinta-feira, 4 de julho de 2013

Joaquim de Carvalho, Mestre de Coimbra

Capa de Diário de Coimbra no passado dia 23 de Junho 
na sequência da classificação como património mundial pela Unesco


Dia 4 de Julho é também Dia de Coimbra. E este ano a cidade universitária tem redobradas razões para festejar, dado que há poucas semanas foi classificada (em rigor, trata-se apenas da Universidade: Alta e Sofia) património da humanidade pela UNESCO. Num curioso e bem documentado artigo do Público, da autoria de Luís Miguel Queirós, fala-se de Uma interminável galeria de ilustres que, ao longo dos séculos, passaram pelos bancos da velha Universidade. Entre os nomes da passada centúria que merecem referência na interminável galeria conta-se «Joaquim de Carvalho (1892-1958), professor de Filosofia na UC e mestre de Eduardo Lourenço» (Público, 30/VI/2013, p. 8). Não deixa de ser um pouco injusto limitar a influência de Joaquim de Carvalho a um só discípulo (por mais destacado que este seja, claro), mas isso, de alguma forma, expressa a actual menor notoriedade do Mestre. À obra e ao magistério de Joaquim de Carvalho dedicou já Eduardo Lourenço um importante ensaio Joaquim de Carvalho e a Ideia de uma Filosofia Portuguesa que, escrito em 1992, foi apenas publicado em Heterodoxias, o Volume I das Obras Completas (Lisboa, 2011). No entanto, através de indicação atenta e amiga do Investigador do CEIS20 da Universidade de Coimbra, Paulo Archer, Ler Eduardo Lourenço tomou há dias conhecimento de um outro texto de Eduardo Lourenço, redigido por ocasião do falecimento de Joaquim de Carvalho, publicado inicialmente em O Jornal da Bahia (onde Eduardo Lourenço, nessa altura, residia e ensinava na Universidade local) e reimpresso em Diário de Coimbra a 5 de Novembro de 1958 (com chamada de capa e continuação na página 7). É esse texto que, em seguida, se reproduz na íntegra, na certeza de que o maior património de Coimbra e da sua Universidade foi, e continua a ser, constituído pelos ilustres que, desde Clavius e Pedro Nunes até Maria Helena da Rocha Pereira e ... Eduardo Lourenço (para citar os dois únicos estudantes vivos da lista de Luís Miguel Queirós) compõem uma sempre interminável galeria.

 Joaquim de Carvalho (1892-1958)

Na Morte do Prof. Joaquim de Carvalho*

A Universidade de Coimbra acaba de perder um dos seus grandes professores. O mundo da cultura portuguesa vê desaparecer com o Prof. Joaquim de Carvalho o mais bem informado estudioso dos múltiplos aspectos do nosso complexo cultural. Trabalhador prodigioso, dotado de privilegiada memória e grande poder analítico, desde muito jovem consagrou a sua atenção aos grandes problemas da cultura portuguesa e ao exame dos intricados laços que articulam essa cultura com o movimento geral do espírito europeu e mundial. Ao longo de uma intensa vida intelectual acumulou um saber variado e vastíssimo acerca das figuras e correntes de ideias definidoras do nosso perfil mental e moral. Os seus estudos sobre Antero de Quental tornaram-se clássicos no mundo de fala portuguesa. Os volumes consagrados aos séculos XV, XVI e XIX, objecto de particular atenção, são do conhecimento de todos que em Portugal e Brasil se ocupam dessas épocas. Mas os seus interesses ultrapassavam em muito a problemática específica desses períodos. Os variados trabalhos que teve tempo de publicar eram apenas degraus para a grande obra que no seu pensamento deveria abranger o conjunto da cultura nacional. Ninguém mais do que o ilustre Mestre possuía os dons e os instrumentos necessários para levar a cabo ou, pelo menos, desenhar, as linhas mestras de um tal edifício. Mas também poucos sabiam como essa tarefa excedia as forças de um só homem e sobretudo poucos se podiam aperceber do interior da própria construção como ela era actualmente inviável por extemporânea.
O desaparecimento do Prof. Joaquim de Carvalho deixa, contudo, nos seus admiradores e amigos, o sentimento exacto de uma certa falta irremediável, não só porque a obra realizada é uma pequena parte da que tinha entre mãos, como pelo facto de não permitir ainda entrever, ao menos, as linhas essenciais dessa obra mestra que não podia ser executada. Isto sim, profundamente o lamentarão sempre os que mais de perto conviveram com o Mestre falecido. Quanto à ausência efectiva de qualquer coisa do género História da Cultura Portuguesa achamos não dever lamentá-lo. No estado actual dos nossos conhecimentos teria sido uma empresa, em parte, fictícia. Só sob o ângulo literário é possível conceber e levar a bom fim um tão vasto desígnio. A mais profunda homenagem a prestar à honestidade intelectual e às responsabilidades de pensador e mestre de Joaquim de Carvalho é a de lhe agradecer não ter cedido à tentação normal das sínteses ilusórias e prematuras. Estamos certos que coisa alguma está mais próxima daquilo que constituiu a intenção basilar da sua actividade docente e historiográfica.
Mais dolorosas e melancólicas são as reflexões de que se acompanha a notícia da sua morte no espírito daqueles que sabem ter perdido na pessoa do Prof. Joaquim de Carvalho o mestre dos estudos de História da Filosofia em Portugal.
Neste domínio a sua falta far-se-á sentir por muitos anos. Em certo sentido não será possível mesmo repará-la. A enorme bibliografia organizada durante dezenas de anos para servir à História da nossa filosofia só no espírito do seu autor guardava aquela vida de relação e potencial referência mútua que são a essência de uma Biblioteca pessoal. No melhor dos casos, a sua riquíssima Livraria ficará à disposição de novos investigadores mas jamais saberemos conexões, hipóteses, filiações ficaram para sempre sepultas com o espírito de quem podia articulá-las. O nosso pesar é tanto mais profundo quanto é certo que essa tarefa, mais limitada que a de uma ambiciosa História da Cultura estava ao alcance da sua capacidade material de trabalho, do seu saber e da sua vontade. Todos quantos se interessam pela história das ideias filosóficas em Portugal sabem que ninguém melhor que o autor de Leão Hebreu, filósofo, António de Gouveia e o Aristotelismo da Renascença, Oróbio de Castro e o Espinosismo, assim como de numerosos estudos dispersos por Revistas ou publicações que marcaram data estava apto para nos dar a larga visão do pensamento filosófico português que tão essencial nos seria para melhor entendimento de nós mesmos.
Na ausência do grande estudo que devia rematar o esforço de uma vida inteira ficam-nos essas obras, todas elas exemplo notável de método e clareza expositiva, aquele método e invulgar clareza que os seus alunos não podem esquecer.
Na notícia da sua morte não foi para nós inesperada: da visita que lhe fizéramos, em passagem rápida por Portugal, poucas esperanças tínhamos trazido, apesar do optimismo doloroso do ilustre doente absorvido, como sempre, na evocação de um sem número de projectos e obras em vias de acabamento. A última a que se referiu, além de uma História da Educação, que lhe roubou mais de um ano de trabalho seguido, tinha por sujeito António de Vieira.
O Brasil e as coisas brasileiras ocuparam muito a sua atenção nos últimos tempos, sobretudo depois da sua vinda a estas terras, onde deixou a forte impressão de expositor notável e grande professor universitário, que na verdade era.
A sua obra e personalidade eram-nos demasiado familiares para que possamos julgá-las já com a necessária objectividade. Todavia, para não ceder ao pathos emotivo que aqui, tão longe da Coimbra onde tivemos a honra de ser seu aluno só podia ser assunto estritamente privado, esforçámo-nos por salientar dessa personalidade algumas incidências intelectuais e o lugar delas na cultura portuguesa contemporânea. De certo, o ilustre Mestre nos perdoaria que disfarcemos a nossa reacção afectiva sob uma consideração, tanto quanto possível serena daquelas virtudes que no professor e no pensador ultrapassavam o âmbito do homem e do amigo. São elas que sobrevivem numa Obra com lugar de relevo no mundo daquela Cultura Portuguesa que foi objecto dela e preocupação constante de quem lhe consagrou com constância e profundidade as melhores horas da sua vida.
[Salvador da Bahia, 1 de Novembro de 1958]

 
Estátua de Joaquim de Carvalho na Figueira da Foz, cidade onde nasceu.





* Diário de Coimbra, 5/XI/1958, pp. 1 e 7.