segunda-feira, 27 de junho de 2011

Num certo sentido só falamos de nós

«Num certo sentido só falamos de nós. Contudo, as nossas palavras essenciais falam sózinhas. Nós pronunciamo-las para nos falar. A plenitude frágil dessa autonomia uma palavra que é menos nossa do que nós somos dela guarda como o diamante a luz do ser que nos é acessível. Como o diamante ela é o resultado da mais rara das vitórias sobre a noite, opacidade nossa e do mundo, vitória sempre precária pois sob a transparência é fácil descobrir o carvão transfigurado. Essa palavra que é suprema nomeação sem a poder ser totalmente, que pede e suporta a metamorfose permanente que a tira da morte para a vida é um dos nomes da Poesia».
De quem são as palavras deste texto? A imagem que Ler Eduardo Lourenço a seguir reproduz basta, com certeza, para identificar tanto o autor como a data e o local da publicação.
António Ramos Rosa em foto de Nuno Calvet (nunocalvet.com)
Imagem retirada de livropelacapa.blogspot.com

Contudo, este mesmo texto (mas será o mesmo?) irá servir de base, quase cinco anos depois, para o ensaio com o mesmo título que prefacia a famosa antologia de António Ramos Rosa Não posso adiar o coração (Lisboa, Plátano Editora, 1974, Colecção Sagitário, nº 3, pp. 9-16) sendo nesse mesmo ano incluído na primeira edição de Tempo e Poesia (Porto, Editorial Inova, 1974, Colecção Civilização Portuguesa). Refira-se que, nesta reformulação do ensaio, Eduardo Lourenço não só aumenta consideravelmente a extensão do texto inicialmente publicado no Suplemento Literário do Diário de Lisboa (analisando entretanto e em pormenor muitos poemas de Ramos Rosa) como modifica o seu início, suprimindo a frase que hoje aqui se reproduziu. Daí a pergunta? De quem são aquelas palavras? Por que motivo terá o seu autor as suprimido na segunda versão deste texto (e no qual  vem a seguinte indicação de data: «Calvi, Abril de 1968 Nice, Novembro de 1972»)?
A referência a Nice e ao mês de Novembro de 1972 é igualmente importante pois permite ao leitor identificar uma larga fatia deste ensaio com um segundo texto, que ostenta quase o mesmo título Poética e Poesia de António Ramos Rosa ou o excesso de real e que, por seu turno, tinha aparecido meses antes no número 15 da revista Colóquio-Letras (Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, Setembro de 1973, pp. 34-42). Em suma, o Prefácio a Não posso adiar o coração (tal como o capítulo de Tempo e Poesia) corresponde, grosso modo, à reunião dos artigos do Diário de Lisboa e da Colóquio-Letras. A diferença mais relevante é, afinal, a supressão quase integral do primeiro parágrafo publicado apenas em 1969.
Ler Eduardo Lourenço não ousa discutir esta ou qualquer outra revisão do Autor, como é evidente. Mas nem por isso deixa de reconhecer que o excerto eliminado talvez merecesse ser conhecido. E por isso hoje o recupera, deixando, como sempre, ao critério dos visitantes deste blog uma eventual apreciação acerca desta forma de desleitura que aqui, mais uma vez, se pratica.

domingo, 26 de junho de 2011

Um olhar de fora sobre Portugal

Numa interessante iniciativa jornalística o Diário de Notícias tem vindo a publicar um conjunto de artigos dedicados àqueles que designa como os portugueses que o mundo reconhece. Na edição de ontem, uma das personalidades destacadas é Eduardo Lourenço, em artigo assinado por Helena Tecedeira e que, com a devida vénis, a seguir Ler Eduardo Lourenço reproduz juntamente com a foto da autoria de Paulo Spranger que ilustra a página 7 do suplemento especial Made in Portugal.



«Figura incómoda, o professor e filósofo é o expoente máximo do ensaísmo literário. A viver em França há mais de 50 anos, nunca abdicou de visitar o seu País, nem durante a ditadura.


Doutor honoris causa pelas universidade de Bolonha e do Rio de Janeiro, cavaleiro da Legião de Honra em França, os graus académicos, condecorações e prémios que recebeu definem a carreira internacional de Eduardo Lourenço. Apesar de viver há mais de meio século em França, o professor, filósofo e ensaísta gosta de passar longas temporadas em Portugal e tem sido o País o grande tema da obra de um homem a quem os amigos gostam de recordar que vê o jogo de fora

Neto de lavradores e filho de um sargento de infantaria que encontrou no Exército uma forma de fugir ao trabalho da terra, Lourenço nasceu em São Pedro de Rio Seco, uma aldeia da Guarda, em 1923, três anos antes de Salazar chegar pela primeira vez ao Ministério das Finanças que o catapultaria para a presidência do Conselho que ocuparia durante quatro décadas.

Foi sob a ditadura que Eduardo Lourenço ingressou no Colégio Militar, onde fez amizades não muitas, mas que durarão até ao fim da minha vida. E em 1940 chegou à Universidade de Coimbra, onde se aproximaria do grupo de neo-realistas constituído sobretudo por militantes do PCP. Mas o jovem beirão era diferente. Eles sabiam que eu era um passarinho, um passarinho implume, mas que não pertencia àquela gaiola, explicou o ensaísta numa recente entrevista ao Público.

E quando, em finais da década de 40, Lourenço pediu uma bolsa e conseguiu um estágio na Universidade de Bordéus, o veredicto em Coimbra não se fez esperar: Traidor. O filósofo desmente. Para ele, a ida para França foi apenas um acaso, como explicou em 2008 em entrevista ao DN por ocasião dos seus 85 anos.

Professor na Universidade da Baía, no Brasil, em Hamburgo, Heidelberg, Montpellier, Grenoble e Nice, Lourenço acabaria por fixar residência na cidade francesa de Vence (Alpes Marítimos) e por casar com a também professora Annie Salomon.

Mas o desejo de poder visitar Portugal foi sempre mais forte do que a vontade de denunciar o regime de Salazar. O Labirinto da Saudade, uma das suas obras mais emblemáticas, é disso exemplo. O Labirinto foi escrito quando estava no Brasil, motivado pela ideia de que estávamos no auge de um dos grande fenómenos, talvez o maior do século XX, que foi a descolonização, explicou em 2008 ao DN. Mas, naquele ano de 1961, eu não podia publicar aquele tipo de reflexão sem abdicar de vir a Portugal. E eu disso nunca abdiquei. Por isso o conjunto de nove ensaios sobre o fim do colonialismo só chegaria às bancas em 1978, quatro anos depois do 25 de Abril.

Apaixonado por história desde que, criança, descobriu na casa de São Pedro de Rio Seco uma mala do pai cheia de enciclopédias e de livros de História de Portugal, Eduardo Lourenço manteve-se sempre atento à realidade nacional. Mas não esquece o que sentiu quando, jovem, estudante universitário, chegou a França. Imagine o entusiasmo e o espanto de chegar a Bordéus e, na rua principal, ver uma grande faixa do propaganda ao Partido Comunista Francês, recordou em várias entrevistas.

O homem que dá nome  e ofereceu três mil livros a uma biblioteca da Guarda, tem agora um prémio com o seu nome. O Prémio Eduardo Lourenço, no valor de dez mil euros, destina-se a distinguir personalidades ou instituições de língua portuguesa ou espanhola com trabalho na área da cooperação e da cultura das comunidades ibéricas. Figura incómoda, defensor de um destino comum para Portugal e Espanha, o autor de Pessoa Revisitado admite que só a sua preguiça explica que grande parte da sua obra ainda esteja por publicar.»

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Le mystérieux J.Waffler

Ler Eduardo Lourenço não conhece muitos ecos críticos a Heterodoxia I, publicada em 1949. Numa altura em que se aproxima a sua reedição, integrada no primeiro volume das Obras Completas, é com certeza interessante revisitar a (escassa) repercussão pública da estreia em livro do ensaísta. Antes de mais, convém referir a página a ele dedicada por Vitorino Nemésio na sua Leitura Semanal do Diário Popular de 28 de Junho de 1950 (p. 5). Se não quiser perder muito tempo em hemerotecas cheias de pó, o leitor encontra uma versão reimpressa deste texto no volume organizado por Maria Manuel Baptista  que recebeu o título Cartografia Imaginária de Eduardo Lourenço – Dos Críticos (Col. “Cultura Portuguesa”, nº 1, Maia, Ver o Verso, 2004, pp. 95-98). De resto, Maria Manuel Baptista analisa, com algum pormenor, essa crítica de Vitorino Nemésio na sua obra Eduardo Lourenço: A Paixão de Compreender (Porto, ASA, 2003, pp. 38-40).
Menos conhecida parece ser a nota de leitura que aparece no número de 1950 do Bulletin des Êtudes Portugaises, revista que se começou a editar em 1931 (registe-se que, já na década de Setenta do século passado, passou a chamar-se Bulletin des Êtudes Portugaises et Bresilliennes) sob a tutela do Institut Français de Portugal. Durante os seus primeiros anos, o Bulletin foi saindo numa muito proveitosa colaboração com a Imprensa da Universidade de Coimbra e com uma regularidade assinalável. Os últimos tempos da revista (entretanto extinta?), que chegou a ser distribuída pela Livraria Bertrand, parecem ter sido menos fáceis (a julgar, pelo menos, por uma periodicidade muito menos constante), mas a verdade é que a qualidade do Bulletin foi sempre altíssima. Merece particular destaque, na primeira fase  sobretudo, a constante participação de Pierre Hourcade que foi um crítico atentíssimo a tudo o que então se editava no âmbito da literatura portuguesa contemporânea, nomeadamente poesia (recorde-se que Hourcade foi um dos primeiros tradutores e especialistas de Fernando Pessoa), mas também romance e ensaio.

Capa do Bulletin des Êtudes Portugaises(1940)
Pierre Hourcade (foto de mundopessoa.blogs.sapo.pt)


Ora, na secção de crítica do tomo XIV do Bulletin, aparecem quase duas páginas consagradas a Heterodoxia I que, ao contrário do que eventualmente seria de esperar, não foram redigidas por Pierre Hourcade. Dir-se-á que o conteúdo de Heterodoxia, por ser de natureza mais filosófica do que exclusivamente literária, pode ter justificado a excepção. É possível, mas, noutros números do Bulletin depara-se o leitor com recensões do crítico habitual da revista  de obras de António Sérgio ou de José Bacelar, por exemplo. Ora, quem vai então escrever sobre o primeiro livro de Eduardo Lourenço? A recensão aparece assinada por J. Waffler. Ler Eduardo Lourenço assume a sua ignorância, mas a verdade é que os dados disponíveis sobre este crítico de Heterodoxia I são escassíssimos. Começou-se a busca pelo Bulletin des Êtudes Portugaises e os resultados foram no mínimo surpreendentes. Desde o primeiro ao último número da revista com o nome original (nºs 33-34 de 1972-1973), a única participação de (ou até referência a) J.Waffler consiste, curiosamente, na recensão crítica que ele assina ao primeiro livro de Eduardo Lourenço. É verdade que, nesse mesmo nº 14 da revista, antes de Heterodoxia I aparecem, como era habitual, pequenas notas críticas dedicadas a livros de outros autores, entre os quais se salientam Urbano Tavares Rodrigues (Manuel Teixeira Gomes, 1950), Vitorino Nemésio (O Mistério do Paço do Milhafre, 1949), Sophia de Mello Breyner (Coral, 1950), António Quadros (Além da Noite, 1950), Luís Forjasz Trigueiros (Sombra do Tempo, 1950) e Jorge de Sena (Pedra Filosofal, 1950).Serão essas recensões todas da autoria de Waffler? À primeira vista,  dir-se-ia que sim, pois todas aparecem não assinadas antes do texto sobre Heterodoxia I  que acaba precisamente com a indicação do nome do crítico. Ou seja, J.Waffler teria escrito sobre  mais de uma dezena de livros nesse número de 1950. Não parece muito crível, mas enfim. Por outro lado, lendo essas recensões (e algumas delas, pela familiaridade do seu estilo, poderiam perfeitamente ter sido escritas por Pierre Hourcade, mas isto é uma mera conjectura), um outro aspecto merece destaque. É que, enquanto o crítico fala de Urbano, de Nemésio, de Sophia e de Sena de uma forma que se diria costumeira (é assim, por exemplo, que Hourcade naturalmente se refere aos autores que lê e critica), já Eduardo Lourenço vem designado como M.Lourenço o que para quem, na altura, tinha apenas vinte e seis anos parece, no mínimo, excessivo. Há um tom ceremonial neste tratamento  (que, aliás, também se encontra na recensão ao livro de Luís Forjaz Trigueiros) que nem o facto de se ter em conta que o ensaísta era assistente na Universidade de Coimbra parece justificar por completo. Que ilações tirar deste particular, pelo menos em Portugal, tratamento? Serão estas recensões de alguém pouco acostumado a lidar com as actividades literárias portuguesas, facto que ajudaria também a explicar a escassez de referências sobre Waffler que, aliás, tem um nome pouco francófono (o que significará aquele J.?), mas que, pelo vistos, sabia ler português e escrevia na língua de Molière? Será que a análise do texto ajuda a encontrar novas pistas? É o que se vai procurar descobrir, em seguida.



Aos olhos de hoje, a recensão parece quase sempre correcta, embora seja algo discutível a tese de que «há, segundo M. Lourenço, uma evolução contínua do pensamento filosófico». Mas, dever-se-á reconhecer que, no parágrafo imeditamente anterior, J. Waffler faz uma síntese razoavelmente feliz de Heterodoxia I, escrevendo (a tradução é da responsabilidade de Ler Eduardo Lourenço, claro): «Um prólogo fogoso a favor da heterodoxia, um ensaio pessimista sobre a filosofia portuguesa, um requisitório contra aqueles que assassinam os mortos declarando-os inactuais e, por fim e sobretudo, o exame crítico dopensamento hegeliano: como ele foi preparado por toda a história da filosofia e como deve ser, por seu turno, superado. Ao todo, 200 páginas extremamente brilhantes de um espírito particularmente informado e vigoroso». O tom da recensão continua francamente elogioso e termina quase de modo apoteótico com uma fina ironia: «Que M.Lourenço nos ofereça depressa, nos próximos livros, a sua própria filosofia de que apenas nos deixou entrever até agora uma pequena parte. Felizes os alunos de M.Lourenço: têm o raro privilégio de conviver com um mestre ao mesmo tempo erudito e apaixonado. Não estará a filosofia portuguesa, apesar de tão maltratada neste livro, a dar, pelo contrário, um testemunho da sua vitalidade?»
Ler Eduardo Lourenço tem de reconhecer que esta análise da recensão não ajuda grandemente na identificação do misterioso crítico e confessa mesmo que chegou a admitir uma hipótese algo extravagante: será J.Waffler um pseudónimo de um recenseador que quis permanecer incógnito? Felizmente, mão diligente e muito profissional descortinou outra pista, informando acerca uma outra referência a Waffler. De facto, na Revista da Faculdade de Letras de Lisboa do ano seguinte, numa crónica sobre as actividades académicas, assinala-se a vinda de diversos professores estrangeiros à Faculdade. Entre esses visitantes conta-se, como se pode comprovar a seguir,  um tal... Prof. J. Waffler!


Revista da Faculdade de Letras, Tomo XVII, Lisboa, 1951, p. 223.


Terá o Prof. Waffler tropeçado, em alguma livraria lisboeta, na estranha serpente de Migdar da capa de Heterodoxia I, oferecendo-se para fazer a recensão crítica de uma obra representativa da jovem filosofia que então se publicava em Portugal? A ausência de outros elementos históricos sobre J. Waffler para além do que se supõe ter sido apenas uma curta estadia em Lisboa, parece justificar todos os voos de imaginação. Ainda assim, Ler Eduardo Lourenço pede aos seus visitantes que, caso disponham de mais informações acerca deste inesperado crítico do ensaísta heterodoxo,  não deixem de contactar o blog que, de imediato, as partilhará com os seus leitores. Talvez desse modo se possa desfazer o que para Ler Eduardo Lourenço continua a ser o enigma-Waffler.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Dia de Camões

Muitas nações se revêem com natural complacência nos seus grandes poetas, a Itália em Dante, a Inglaterra em Shakespeare, a França em Molière, ou Alemanha em Goethe, mas nenhuma delas é Dante,  Shakespeare, Molière, ou Goethe, como nós somos Camões. O que cada um desses poetas encarnou pode separar-se deles sem afectar a imagem dos povos a que pertencem. Sem dúvida, a Alemanha é a Alemanha  de Goethe como a Itália é a pátria de Dante. Mas só Camões, graças a Os Lusíadas, se converteu para nós, ao longo do tempo, na imagem mesma de Portugal, e o poema, na tão celebrada “bíblia da pátria”, alma da nossa alma. A quem escapa o que este fenómeno tem de prodigioso e que responsabilidade impõe o confrontarmo-nos todos com o mito cultural que implica com a ideia que fazemos, ou devemos fazer, da nossa missão e vocação na História, ou na simples vida colectiva?
É inegável que a osmose e a identificação entre o Poeta e o Livro, entre o Livro e a consciência nacional é não só um facto, mas o facto capital da nossa Cultura. Se o não fosse, não estávamos aqui, reunidos colectivamente em volta de Camões, refazendo neste templo de prodígios siderais, uma nova versão dos painéis de Nuno Gonçalves. Podíamos estar aqui apenas para evocar aquele que continuamos a considerar o maior Poeta da língua portuguesa e um dos grandes poetas do Ocidente. Talvez fosse mesmo a mais pura homenagem que lhe pudéssemos prestar. O sentido da nossa presença ultrapassa, contudo, os puros imperativos de uma Cultura em estado de auto-dilaceramento. De qualquer modo, Os Lusíadas, enquanto mito nacional, escapa a esses imperativos ou transcende-os. Não é a sua música eloquente, o milagre estético que representa na poesia épica moderna, a emoção que ainda hoje pode provocar, o que fundamentalmente celebramos enquanto comunidade nacional. É a imagem camoniana de nós mesmos, a nossa imagem épica, sublimada ou mesmo sublime, tal como Os Lusíadas a configuraram há quatro séculos e continuam a irradiá-la até ao presente. Como evocá-la, sem sucumbir à tentação de um narcisismo que nos perverteria a nós e diminuiria o Poema, convertendo-o em espelho deformado de um nacionalismo cego, fonte de irrealismo histórico e de esquizofrenia ideológica e cultural? O perigo não é imaginário porque essa tentação foi e é permanente. Tanto mais que Os Lusíadas, como todos os poemas de génio, não é uma obra de pura beleza intemporal, neutra, que possamos consumir na paz erudita de uma devoção de encomenda ou de uma admiração necrófila. Por ter sido e ser ainda obra viva, o Poema confere à visão do mundo um dia encarnou, à experiência humana e colectiva de que é reflexo, à ideologia datada de que é fruto maduro e exemplo incomparável, uma força que continua a trabalhar e interpelar em profundidade o nosso presente de portugueses. É o único Livro que não podemos depor na prateleira da História porque é ele mesmo História.


Excerto do discurso proferido por Eduardo Lourenço nas comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, realizadas em Leiria em 1980. O texto integral pode ser lido em “Camões ou a nossa alma”, AAVV, Camões e a Identidade Nacional, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Col. “Temas Portugueses”, 1983, pp. 99-107. Texto reimpresso em Poesia e Metafísica. Camões, Antero, Pessoa, Lisboa, Sá da Costa Editora, 1983, pp. 87-96 [Vence – Lisboa, 10 de Junho de 1980].

terça-feira, 7 de junho de 2011

Não sei que poema entrou como um ladrão na minha alma

Escola Primária de São Pedro do Rio Seco onde Eduardo Lourenço aprendeu as primeiras letras (Foto Ler Eduardo Lourenço, Maio 2011)


«[...] Não sei que poema entrou como um ladrão na minha alma. Pode nem ter sido uma daquelas singelas poesias de João de Deus que, como a Engeitadinha, figurava na minha selecta como exemplo da lusíada comoção da arte da tristeza da vida. Ou alguma do Junqueiro, como a abertura do Os Simples, no mesmo registo mas mais optimista. Mas pensando bem, talvez nada me tenha deixado mais perplexo, abrindo-me a porta do sonho, que uma mera frase destinada a ilustrar o uso do no meu primeiro livro de escola: O filho do Zeferino foi a casa dos filhos da mãe do Zebedeu. Nessa hora fora da vida toda a poesia do mundo estava inteira neste enigma prosaico. E ainda hoje lá permanece.»*
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
* Excerto do prefácio que Eduardo Lourenço redigiu para o número 21 da colecção, dirigida por José Cruz dos Santos, os poemas da minha vida (Lisboa, Público, 2006, pp. 7-8). Nessa antologia, Eduardo Lourenço incluiu poemas de Petrarca (traduzido por Vasco Graça Moura), Luís de Camões, S. João da Cruz (por Jorge de Sena), Novalis (por Fiama Hasse Pais Brandão), Baudelaire (por Jorge de Sena e por Fernando Pinto do Amaral), Antero de Quental, Cesário Verde, Camilo Pessanha, António Machado (por José Bento), Teixeira de Pascoaes, Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, José Régio, Miguel Torga, Adolfo Casais Monteiro, Jorge de Sena, Sophia de Mello Breyner Andresen, Carlos de Oliveira, Eugénio de Andrade, Mário Cesariny, Alexandre O'Neill, António Ramos Rosa, António Osório, Ruy Belo, Pedro Tamen, Armando Silva Carvalho, Gastão Cruz, Vasco Graça Moura, Al Berto, Nuno Júdice e Paulo Teixeira.

sábado, 4 de junho de 2011

A Amarga Fúria. Na não-morte de Jorge de Sena*

                                                                                                                                                       Só disso existirás. Que te não leiam,

                                                                                                                                                        te não entendam ou de ti não falem

                                                                                                                                                         os que de imagens e sons se vivem.
                                                                                                                                                                                                   Exorcismos




Quando todos nos esquecermos que Jorge de Sena está hoje tipograficamente “morto” em letra maiúscula, com aquela evidência de notícia que já merecia vivo, dele falaremos. É impossível suportar do além onde não está, mesmo em pensamento, aquele fabuloso desprezo que ele sabia comunicar ao que por rito existe e se perpetua. Não sei se é tempo para “viúvas” de Jorge de Sena, que o poeta superconjugal que ele foi não deve ter deixado, lhe florirem a agreste e apátrida tumba onde a sua épica violência de se sentir roubado da pátria morada não cabe, enjeitando flores, sempre para tal homem amoroso delas como alegria da terra, tardias. Tardio tudo lhe foi, mesmo o que o coroou, ou aquilo com que se coroou como o Indesejado-mor do reino que não foi, mas com alguma razão se pôde supor. Tardio, porque ele vivia em avanço, e com uma fúria de quem sabia a vida contada, um combate que não tinha outros adversários que aqueles que o seu camoniano génio de monstros a ven­cer num mar mais fundo e tenebroso que o antigo, sob cada pedra ou livro, levantava. A sua morte só uma misteriosa voz, rolando como outrora sobre as margens daquele Mediterrâneo onde no tarde deuses redivivos o premiaram, a poder ir anunciando como um eco em todo o lugar lusíada: «o grande Sena morreu».

Duro e violento foi o seu combate com uma morte que não quis deixar tempo a quem, com um humor digno de Quevedo, anunciara a intenção de a esvaziar à força de diatribes e insultos (última forma do desespero e amor) da sua nula omnipotência. Dele mesmo, como de ninguém, mas de outra maneira, a morte não levara sequer o cadáver adiado que nun­ca foi. Jorge de Sena ficou, está, ficará inteiro, com aquela espécie de nudez ofuscante dos jazentes reais da época turva dos fins do Renascimento, tão sua conhecida, numa poesia que desencoraja as glosas estéticas por lhe ter sido arma sem cessar brandida contra os céus imaginários por conta de um amor descomedido a uma vocação pânica sem igual na nossa Literaturas, se a palavra não lhe excita ainda a verve sarcástica e o verbo justiceiro até ao suicídio. Jorge de Sena a si mesmo se comentou com um despudor grandioso e para sempre estará vedado aos que no seu labirinto poético se aventurarem, passar ao lado desse olhar que no centro dele o defende e cobre com sombrio e altivo esplendor. Que mais glosa da sua morte precisa aquele que sabia que o seu (imaginariamente) sonegado cadáver futuro iria crescer e avassalar a nossa exígua cena caseira para se converter, como nas metamorfoses que tanto explorou, em qualquer ainda não conhecida constelação celeste? Que mais dilacerada que aquela que mil vezes insinuou na trama tão lusitanamente hipertrofiada e amarga da sua prodigiosa provocação poética que a ninguém se destinava senão a si mes­mo, parecendo destinar-se, com nomes e tudo, à humanidade quase inteira? Que requiem desapiedado, que música de lágrimas devolvidas à por ele negada “sensibilidade lusa”, pode superar o exorcismo de olhos abertos e alma jamais ren­dida ao inevitável com que da tentação da piedade por si se defendeu?



Pouco a pouco me esqueço e não sei nada,

Assim será a morte, e o que da morte

é sono e dor aguda que me crispa plácido

em sonhos dissolvidos sem anseio ou mágoa.



Este ficar de longe num cansaço;

o ouvir das vozes como outrora infância;

o estar-se imóvel mais, e devagar

perder, um após outro, o gosto a um gesto



mesmo pensado nesta horizontal

que alastra entre o passado e coisa alguma.

Este não ter senão a solidão

como silêncio e treva finalmente aceites.



A vida tão vivida e desejada,

o ser como o fazer, o sexo em tudo visto,

as coisas e as palavras possuídas,

tudo se não dissolve mas se afasta



alheio e sem saudade. Nem repouso

ou calmo abjurar da fúria amarga.

Apenas não sei nada, não recordo nada,

já nada quero, e aos outros deixo tudo.



Deixou tudo, deixando-se em versos que como a prosa de Montaigne de mais ninguém falaram, mas com uma incomplacência complacente que apaga no seu prodigioso desnua­mento as fronteiras imaginárias entre nós e o mundo. Ninguém calou a boca daquele que sobre esta terra andou com «os dois pés sem medo das palavras». É inútil calá-lo agora com flores póstumas, decorar-lhe



a dor de haver nascido em Portugal

sem mais remédio que trazê-lo na alma



que tudo, elogio ou evocação, saudade ou remorso, glória ou descaso, de ninguém os pode receber quem em vida os teve por lusitana antropofagia, necrofágico reflexo de recuperar na morte o mais duro ofício de admirar na vida a vida sem morte que nela ia. Ou como só ele o podia escrever:



Ó mundo pulha e pilha que de mortos vive!



                                                                                                                       [Vence, 6 de Junho de 1978]



                                               

* Ler Eduardo Lourenço assinala hoje o trigésimo terceiro aniversário do desaparecimento físico de Jorge de Sena, escritor e amigo de Eduardo Lourenço, com a transcrição de um texto que o ensaísta escreveu dois dias após a morte do autor de As Evidências mas que só seria publicado um mês depois no  no Suplemento “Letras & Artes” de Diário Popular, Lisboa, 7/VII/1978, p. I. A seguir o leitor deste blog poderá consultar um repertório dos textos mais importantes que Eduardo Lourenço dedicou à figura e à obra de Jorge de Sena. Tal como em outras ocasiões, Ler Eduardo Lourenço agradece a colaboração da Professora Gilda Santos nesta homenagem à amizade  entre Eduardo Lourenço e Jorge de Sena e, ao mesmo tempo, remete uma vez mais para o site Ler Jorge de Sena que também ele evoca a efeméride.



ALGUNS TEXTOS DE EDUARDO LOURENÇO SOBRE JORGE DE SENA

1) “Nótula a Uma Canção de Camões de Jorge de Sena”, Suplemento Cultura e Arte de O Comércio do Porto, Porto, 5/XII/1967, p. 14.
2) “A Amarga Fúria. Na não-morte de Jorge de Sena”, Suplemento Letras & Artes de Diário Popular, Lisboa, 6/VII/1978, p. I. [Vence, 6 de Junho de 1978].
3) “Encontro com Jorge de Sena”, Jornal de Letras, Artes e Ideias, nº 1, Lisboa, 3/III/1981, pp. 14-16.
4) “Jorge de Sena e o demoníaco”, O Tempo e o Modo, nº 59, Lisboa, Abril de 1968, pp. 324-331. Texto reimpresso em AAVV (Org. Eugénio Lisboa), Estudos sobre Jorge de Sena, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1984, pp. 49-59 e em O Canto e o Signo. Existência e Literatura (1957-1993), Lisboa, Editorial Presença, 1994, Col. “Biblioteca de Textos Universitários. Nova Série”, nº 9, pp. 72-79.
5) “As evidências do Eros”, Colóquio-Letras, nº 67, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, Maio de 1982, pp. 5-13. Texto reimpresso em nº especial “La Poésie portugaise de Fernando Pessoa à nos jours”, Março de 1998, pp. 91-100 [Vence, 27 de Março de 1982].
6) “Poesia e poética de Jorge de Sena”, AAVV (Org. de Maria Alzira Seixo), Poéticas do Século XX, Lisboa, Livros Horizonte, 1984, Col. “Horizonte Universitário”, nº 42, pp. 195-204. Texto de comunicação no Colóquio sobre a Poesia do Século XX, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 4-5/IV/1983 e reimpresso em Jornal de Letras, Artes e Ideias, nº 149, Lisboa, 14/V/1985, pp. 19-21 e em Quaderni Portoghesi, nº 13-14, Pisa, Giardini Editori, Primavera de 1983, pp. 23-33 [Vence, 27 de Março de 1983].
7) “Evocation de Jorge de Sena”, AAVV, Actes du Colloque, Paris, Fondation Calouste Gulbenkian, Centre Culturel Portugais, 1986, pp. 175-185. Texto de conferência em “L’enseignement et l’expansion de la Littérature Portugaise en France”, Paris, 21-23/XI/1985. Uma versão deste texto com o título “Evocação de Jorge de Sena”, tradução do francês por Teresa Cristina Cerdeira, foi publicada em Boletim do SEPESP, nº 6, Rio de Janeiro, SEPESP - Seminário Permanente de Estudos Portugueses da Faculdade de Letras UFRJ, Setembro 1995, pp. 9-22.
8) “Sinais de Fogo: a invenção de um poeta”, Arquivos do Centro Cultural Português, vol. XXV, Lisboa-Paris, Fundação Calouste Gulbenkian, 1988, pp. 73-75.
9) “Cartas para Jorge de Sena”,  Mécia de Sena, Eduardo Lourenço/Jorge de Sena. Correspondência, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Col. “Biblioteca de Autores Portugueses”, 1991. Inclui cartas de e para Eduardo Lourenço e um texto de prefácio “Carta para ninguém”, pp. 9-11 [Lisboa, 25 de Julho de 1982]. Algumas cartas foram reimpressas com o título “Jorge de Sena e Eduardo Lourenço: Portugal a duas vozes” em Jornal de Letras, Artes e Ideias, nº 462, Lisboa, 19/III/1991, pp. 13-15.
10) “Viagem no imaginário crítico de Jorge de Sena”, AAVV (Org. de Gilda Santos), Jorge de Sena em Rotas Entrecruzadas, Lisboa, Edições Cosmos, 1999, Col. “Cosmos Literatura”, nº 45, pp. 43-50 [Rio de Janeiro, 26 de Agosto de 1998].
11) “Jorge de Sena”, Relâmpago. Revista de Poesia, nº 21, Lisboa, Outubro de 2007, Fundação Luís Miguel Nava, pp. 15-16.
12) “O regresso do (In) desejado” [Sobre Jorge de Sena], Jornal de Letras, Artes e Ideias, nº 1017, Lisboa, 23/IX/2009, p. 6.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

O que será hoje uma Heterodoxia ... III?

O projecto de edição das Obras Completas de Eduardo Lourenço prevê como primeiro volume o título Heterodoxias que se encontra agora em processo final de revisão de provas tipográficas. Neste tomo inaugural das Obras irão aparecer, para além de todos os textos já publicados em Heterodoxia I (1949) e Heterodoxia II (1967) e do extraordinário prefácio à reedição de 1987 (“Escrita e Morte”, Heterodoxia, 2ª edição Lisboa, Assírio & Alvim, 1987), um conjunto de textos dispersos e inéditos que foram redigidos e/ou publicados em épocas mais ou menos contemporâneas às duas primeiras heterodoxias. Por outro lado, Eduardo Lourenço decidiu enriquecer este livro inicial das suas Obras com um novo capítulo que designou por “Heterodoxia III”. De que consta essa terceira heterodoxia? Encontram-se no espólio de Eduardo Lourenço (como se sabe, reunido e organizado por João Nuno Alçada, em projecto ainda em curso)  inúmeros esboços de livros, de capas, de títulos e de índices que o ensaísta pensou fazer, sendo que muitos deles não passaram dessa fase preliminar. Muitos destes esboços foram, de resto, dados a conhecer ao público em número especial da revista Colóquio-Letras (nº 171, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, Maio de 2009). Ora, um dos planos que Eduardo Lourenço, por diversas ocasiões, terá arquitectado tinha precisamente a ver com um hipotético terceiro volume de Heterodoxia. Por diversas razões, umas mais circunstanciais, outras mais substantivas, essa Heterodoxia III nunca chegou a conhecer a luz do dia.

O documento, completamente inédito, que hoje Ler Eduardo Lourenço partilha com os seus leitores consiste precisamente num manuscrito não datado que corresponde a uma tábua de matérias de um desses esboços e que, sem grande margem de erro, se poderá situar entre os finais dos anos  Sessenta do século passado e a primeira metade da  década seguinte. Que textos podemos descobrir neste índice? Alguns deles serão relativamente fáceis de identificar. Por exemplo, “Situação Africana e Consciência Nacional” corresponderia, com certeza, ao que veio a ser o livro com o título homónimo (Amadora, Génese, 1976, Col. “Cadernos Critério 2”), até porque, quando o opúsculo é editado (naturalmente já depois do 25 de Abril, devido à delicadeza política do tema colonial), Eduardo Lourenço esclarece os seus leitores que se trata de um texto elaborado nos primeiros anos da Guerra de Angola.


Por outro lado, é muito provável que, mesmo que não haja uma total coincidência entre os dois textos, “O Exército e a Inteligentzia”  venha, ao menos em parte, a desembocar em Os Militares e o Poder (Lisboa, Arcádia, 1975). Quanto a outros, embora seja possível identificar (e parece que é) certos manuscritos inéditos que permitam antever o que poderia vir a ser essa nunca concretizada Heterodoxia III, eles talvez nunca tenham ido além do título. Ou se foram, o seu rasto perdeu-se...



Em 2010, quando Eduardo Lourenço renova, tantos anos volvidos, o projecto de compor uma Heterodoxia III os textos já serão completamente diferentes (uns já publicados de modo disperso, outros absolutos inéditos) e, dentro de algumas semanas, o leitor das Obras Completas poderá conhecer a resposta actualizada do ensaísta à pergunta que, em entrevista publicada em 1987 na revista Phala, Francisco Belard lhe dirigiu: «O que seria hoje uma Heterodoxia III?»